quinta-feira, 22 de maio de 2008

PROSA DA QUARTA - por CLAUDER ARCANJO

Minha Pasárgada

Clauder Arcanjo

Vira e mexe, entro em discussões acerca de que a minha cidade é a melhor.
Um dos meus contendores prediletos é o cronista de Saudades, Francisco
Rodrigues da Costa. O meu dileto amigo Chico Rodrigues. Ou Chico de Neco
Carteiro, como ele prefere ser chamado; orgulhoso por ter, no sobrenome, a
alcunha do seu inesquecível pai.
— Menino do Catecismo, olhe para esse mar! Licânia não tem isso! —
tripudia ele, frente à praia de Areia Branca, no Rio Grande do Norte.
Inquieto, diante do Atlântico, cutuco-o, com vara curta.
— Você fala assim, Chico, porque nunca tomou banho nas águas do rio
Acaraú, Tejo da minha aldeia cearense!
— Aldeia?!... Então é uma taba! — devolve-me, rindo, à larga, troçando da
minha província, e dando as costas, traquinas, à figura de linguagem.
Surpreso com a sagacidade desse filho da Salinésia, não resisto, e caio,
também, na risadaria frouxa. Daquelas que quase nos fazem urinar nas
calças. As gargalhadas da amizade rivalizam com o marulho das ondas.
Muitas vezes, Chico recorre aos préstimos dos amigos. Os mais requisitados
são: David Leite, potiguar radicado em Salamanca, Mario Silveira, mogiano
hoje residindo na Paulicéia Desvairada, e o advogado André Luís.
Como os três são amigos comuns, assistem ao festival de farpas, entre
Santana do Acaraú e Areia Branca, sorrindo de camarote, contudo,
astuciosos, não tomam partido. Apenas, de quando em vez, uma acha de
lenha, capciosamente, é lançada por um deles no fogo cruzado em que nos
encontramos.
“É verdade que Chico foi visto entrando no Consulado do Ceará, em Mossoró,
para requerer o seu título de cidadania cearense?” — espeta Mario, de São
Paulo, via e-mail.
Antes de comemorar o reforço, vejo Chico apresentar-se, rápido no gatilho.
“Até tu, Brutus!”
Sem tempo a perder, avanço alguns metros no campo de batalha.
David interpõe-se, aparteando o filho de Neco Carteiro:
“Amigo velho, a nossa relação com o Ceará é engraçada mesmo. Apesar das
bromas, temos que reconhecer que grandes figuras ‘mossoroenses’ eram, na
verdade, cearenses: Vicente Sabóia, para citar um exemplo. Um homem de
visão, que foi de fundamental importância para o desenvolvimento de
Mossoró. E, entre os atuais, podemos citar tanto o Menino de Licânia como,
também, o poeta Leontino Filho, cujo valor a terra de Santa Luzia ainda
não entendeu bem.
Bem, vamos falar dos positivos, porque o Ceará também já nos mandou
algumas figuras de ‘lascar os tamancos’ (essa expressão o amigo Mario
certamente não irá entender).”
A adesão de David põe cobro na pendenga. Telegraficamente, saúdo o autor
de Ombudsman Mossoroense: “Grato pelas palavras amigas, David. Somos mais
do que Estados vizinhos, somos Estados irmãos. Apesar dessa paixão
enrustida do Chico pelo Ceará! (hahahahaha...)”.
Chico capitulara, emitindo uma carta de rendição, intitulada
“Metamorfose”, precedida de um recado ao filho de Mogi das Cruzes.
“Amigo Mario: Diante fogo cerrado, o areia-branquense se entrega
incondicionalmente. Abraços.”
Releio “Metamorfose”. Penso até em registrá-la no cartório. Hei de tomar
todos os cuidados, pois O Cabreiro, como gosto de chamá-lo, pode querer
roer a corda a qualquer momento. E, uma prova documental, lavrada em juízo
com a ajuda do advogado André Luís, põe-me a salvo dum possível recuo. No
entanto, sereno os ânimos e, desta feita, proponho assinar o armistício,
sob uma única condição. Inegociável e irrevogável, registre-se para a
posteridade. Faço aqui questão de externá-la.
“Amigo Chico: Rendo-me, incondicionalmente, seu cabreiro. No mundo, cabem
duas Pasárgadas: Licânia (em primeiro, é claro) e Areia Branca (em
segundo, óbvio) risos...”
Chico, que eu julgara batido, ardiloso, como sempre, põe, ainda, as
unhas-garras de fora.
“Amigo Clauder:
Tá certo. Em primeiro, Licânia. Areia Branca em segundo. Mas, para não
morrer sem estrebuchar, invoquemos os votos do ‘espanhol’ e do ‘paulista’.
Pergunte a eles o que preferem: se o clima esturricado de Licânia ou o
frescor do ‘marzão’ da praia de Upanema? ‘Assim é covardia’, você,
vencido, jogará a toalha. Ahahahah... Abraços para vocês, extensivos às
suas caras-metades pelo grande dia. Chico.”
Parto para a cartada final. Em pleno Dia das Mães, fulmino:
“Caro Chico:
Contente-se com o segundo lugar, amigo. Quando você se deitar numa rede
branca no alpendre da Fazenda Licânia, tomando um copo de leite mugido,
ouvindo o canto das graúnas, sob o farfalhar melodioso das carnaubeiras,
você, em êxtase, gritará aos quatro ventos:
— Menino do Catecismo, tu nasceste no Paraíso!
E eu, com o sorriso largo, o abraçarei festivo, dizendo:
— Seja bem-vindo à Terra Prometida, Chico! Minha Canaã, minha Pasárgada,
meu Ceará (risos...).”
Sem esperar golpe tão certeiro, Chico de Neco Carteiro entrega os pontos.
— Rede branca no alpendre, com leite mugido?!... Assim é demais. Você
venceu, Menino!
Ganhei a batalha pelo estômago, o calcanhar-de-aquiles do cronista da
Salinésia. E, galhardamente, inflo o peito e vou dormir tranqüilo, a
sonhar com a bandeira da minha Pasárgada querida mais uma vez alçada no
mais alto mastro. Todavia, permanecerei com um dos olhos bem abertos:
Chico Rodrigues pode estar a aprontar um contra-ataque. E com O Cabreiro
não se brinca!

Clauder Arcanjo — Professor
clauder@pedagogiadagestao.com.br

Texto publicado no jornal Gazeta do Oeste (Mossoró-RN), caderno Expressão,
espaço Questão de Prosa, edição de 18 de maio de 2008.

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