quinta-feira, 29 de maio de 2008

PROSA DA QUARTA - CLAUDER ARCANJO

Uma garça em alto-mar

Clauder Arcanjo

Há anos, não me lembro exatamente quando, escrevi uma crônica intitulada
“Uma garça no asfalto”. “Lembrou-se disso por quê?” — indaga-me o
apressado leitor.
Explico. Prossiga na leitura desta crônica dominical que, prometo, tudo se
fará claro.
Estava eu, no último final de semana, na plataforma marítima P-37. Era um
domingo de maio, de um inverno moderado. De um céu azul e limpo, raro
naquelas duas semanas em que me encontrava embarcado. O navio-plataforma
já se via envolto por sua faina. O petróleo não parava, as rotinas de
operação e manutenção prosseguiam céleres. Os petroleiros em seus postos,
nas lides diárias. Como de costume.
Havia tomado o café, lembrando, um pouco tristonho, que eram 18 de maio. E
o número dezoito tem um significado especial para mim. Foi num dia dezoito
em que me enamorei com a minha Biscuí, eterna musa deste escriba
provinciano. Se meus textos não são de qualidade, registre-se que nada se
deve à minha musa inspiradora, mas tão-somente às debilidades que abundam
no meu mister de escrevinhador.
Já no escritório, às oito horas, fui chamado para receber os novos
residentes da unidade marítima; é regra, aqui, o gerente recepcioná-los.
Formamos uma espécie de família petroleira; irmanados, o confinamento
torna-se menos pungente, bem sabemos.
Como me encontrava no primeiro piso do navio, tive que subir a escada em
direção ao segundo. Saindo do casario por boreste, rumei para a recepção,
local onde desembarcaram os recém-chegados à Petrobras 37. Até lá,
caminharia uma dezena de passos, tendo, à esquerda, como cenário, as águas
oceânicas.
O navio se encontrava com pouco balanço, pois o Atlântico não estava nada
revolto, ao contrário, nunca o vira tão plácido. Confesso que parei para
correr a vista pelo oceano. Como a produção se dá em águas profundas,
perto dos mil metros de lâmina d’água, temos, como únicas companhias, as
outras unidades flutuantes. Alonguei os olhos pelas unidades irmãs, a
lembrar-me de que, em cada uma delas, mais de uma centena de colegas
trabalhava, num domingo, longe de casa. Como sei que plataforma não é
local para digressões, cuidei de voltar a minha atenção para a incumbência
que me esperava: as boas-vindas aos novos.
Foi aí que a coisa se deu. Rápido, como tudo que encanta, ao tempo em que
surpreende.
De início, juro, não acreditei no que os meus olhos me diziam. “Será
ilusão? Como isso pode se dar? Estamos a centenas de milhas da costa mais
próxima; isso não é verdade!”
Incrédulo, cocei a órbita dos olhos, porém o ‘objeto’ se fazia cada vez
mais real, e mais próximo.
Uma garça pairava quase junto ao costado do navio! Sim, uma garça! Num vôo
sereno contra o sentido do vento brando que, naquele momento, corria junto
à balaustrada. De asas brancas, de bico faceiro, com suas patas
recolhidas, e o seu porte altaneiro e altivo.
“Uma garça?!...” — indaguei-me.
“Sim, por que não?!” — respondi-me, peremptoriamente.
Reconheço que quase esqueci do meu compromisso. Uma ave assim tira a gente
do sério. No entanto, dei uma olhada final no belo pássaro e dirigi-me
para o ponto de reunião.
Nesse exato instante, como a antever a minha atitude, ela abriu ainda mais
as suas alvas asas, fez um volteio exibicionista bem perto de mim e
mergulhou na direção das ondas, para, pouco depois, embicar para o alto...
e sumir-se no horizonte. Uma bela exibição, caro leitor! Com velocidade, e
muita, mas muita, graça.
Vi-me invadido por um sentimento estranho. Um quê de saudade. “Seria ela a
mesma do asfalto de anos atrás?” — o pensamento tem razões que a própria
razão de cronista desconhece. Preferi silenciar. Não ousei formular
resposta.
Ao entrar no pequeno recinto, percebi nos colegas recém-embarcados uma
aura de melancolia. Afinal era domingo, haviam deixado suas casas, e
estavam, desta feita, longe dos seus. E isso, você há de concordar, põe
uma sombra de lágrima nos olhos de qualquer um.
Mudei, então, o rumo da prosa. Em vez do discurso pronto de sempre,
protocolar e programado, improvisei e, levado pela imagem da garça que
ainda habitava a lembrança, quase que fiz uso de minha veia poética. A
tempo, mudei o rumo da conversa, brincando com o aspecto macambúzio de
alguns, e encerrei as boas-vindas, com o sorriso melhor que pude colher em
mim.
De volta ao escritório, encontrei-me com um colega no corredor e
descrevi-lhe, com o máximo de detalhes, a garça que flagrara junto a nós
há poucos minutos.
— Uma garça, engenheiro Clauder? Em alto-mar?!...
Na pergunta, a marca insofismável da incredulidade. Poderia ter me
embrenhado na selva dos argumentos, mas preferi calar-me. Dentro de mim, o
medo de que ele me convencesse de que tudo fora apenas ilusão. Ou até que
era uma ave diferente, sem muita importância, cronisticamente falando.
Preferi ficar com a minha visão. Garça no mar é algo raro, e não abriria
mão dela de jeito nenhum. Naquele domingo, 18 de maio, uma graça se deu:
dormi e sonhei com uma garça. Aquela que há anos surpreendera-me no
asfalto de Mossoró, e, agora, gratificara-me com um vôo imaculado em
alto-mar.

Clauder Arcanjo — Professor
clauder@pedagogiadagestao.com.br

Texto publicado no jornal Gazeta do Oeste (Mossoró-RN), caderno Expressão,
espaço Questão de Prosa, edição de 25 de maio de 2008.

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