quarta-feira, 14 de maio de 2008

PROSA DA QUARTA - CLAUDER ARCANJO

Ferrugens no amor

Clauder Arcanjo

Escritor, dizem, é antena de tudo. Sofremos, algumas vezes de forma
antecipada, pelas desvalias do mundo, pelas desventuras que assomam no
horizonte da sociedade.
Esta semana, eu andei deveras cabisbaixo. Pelas calçadas, antevi casais
presos na rotina. Seres com cheiro de mofo e, até suspeito, de
maus-tratos. O que se passa com o amor? Haverá sinais de ferrugem nos
relacionamentos?
Calado e pensativo, eu varei a noite na vã tentativa de fechar um
diagnóstico acerca desse tenebroso mal. Pior do que a dengue hemorrágica,
fique sabendo, caro leitor.
No dia seguinte, logo cedo, cruzei com um desses casais e, deles, tive
pena. Ele, cabelo em desalinho, barba por fazer, roupa descuidada, como de
quem não liga mais para a beleza da vida, e o pior: o rosto marcado pelo
vinco dos anos e da dor. Ela, os olhos por demais tristonhos, com a voz
baixa e rouca, a responder a tudo e a todos sempre com os indefectíveis e
fatais monossílabos. Quem sofre fala pouco, geralmente se esconde no manto
do silêncio. Dois zumbis, a desfilarem penosamente pelas calçadas da nossa
cidade.
Parei, fiz vezes de conversar, na tentativa de inocular um pouco de alento
no corpo e na mente daquele par. Mas a coragem me fugiu pelos dedos
entreabertos das minhas mãos, e o gesto não se fez, e eu calei. Calei,
porém minha mente foi logo invadida pelo receio do pecado da omissão. “Por
que não lhes dirigi uma palavra amiga?”
A falta me pesou, e eu continuei os meus passos, no entanto mais murcho
ainda. Sempre tive temor dos omissos, e me vi exercendo aquele papel.
Entrei em casa, e recolhi-me ao quarto. Quis ler um livro, contudo a
concentração não se achegava a mim; em vez de prender-me ao ritmo da
narrativa, via-me novamente frente ao casal que antes encontrara.
Fugi das páginas do romance, e fui tomar um banho. Fiquei embaixo do
chuveiro por longos minutos, quem sabe a água não lavaria as minhas
preocupações! Tudo à toa, os dois fizeram-se mais presentes, agora sob o
som de músicas que falavam de amores perdidos, dramas aos quais eu nem
sequer imaginava que os sabia de cor.
Procurei ligar a tevê, no entanto todos os canais traziam-me novelas, e,
nelas, dores mais fundas ao meu peito aflito.
— Mas será possível!?...; desabafei.
Então, corri novamente para a rua. O melhor era sair; os fantasmas
poderiam invadir o meu lar, concluí.
Mal cheguei ao Centro, e já me deparei com uma legião de casais idênticos
ao do início desta crônica. Muitos nem mais se davam as mãos, andavam como
dois desconhecidos, lado a lado, fisicamente, mas, no fundo, bem
distantes, e como.
A tarde sombria. Os casais enfeitam o vesperal, ao tempo em que o enfeiam,
quando graves.
Entrei na primeira lanchonete que avistei. Precisava dum café quentinho.
Sentei-me a uma mesa ao canto, e corri a vista pelo ambiente. Quatro
senhores discorriam sobre os últimos acontecimentos políticos. Numa outra,
três rapazes declaravam a culpabilidade dos pais acerca do assassinato da
menina Isabella. Numa mais próxima, quase colada à minha, dois enamorados.
Aos beijos e afagos, esquecidos do bolo e do café ao centro.
— Você não me ama tanto assim!
— Eu?!... Sou capaz de morrer se lhe perder, minha neguinha!; rapidamente
ele respondeu.
O silêncio caiu súbito sobre os dois, pois os lábios se irmanaram num
beijo longo e terno.
A garçonete se aproximou.
— Açúcar ou adoçante, senhor?
— ...
— Açúcar ou adoçante, senhor?; inquiriu-me mais alto.
Confesso que estava nas nuvens, aliás, digo melhor, com os olhos postos na
cena vizinha. O amor sempre me emociona e me atrai. Sobremaneira.
— Açúcar, minha cara. Hoje, eu quero um café bem forte e doce!; respondi,
rubro de vergonha, todavia com um sorriso cabreiro na face.
Sorvi o meu café aos poucos, sempre com as antenas ligadas no diálogo dos
apaixonados.
— Eu te amo!
— Eu também, querido!...
Vi-me invadido pela paz do crepúsculo. O sol se despedia distante, uma
cálida ventania a varrer a cidade antes tristonha.
Deixei o ambiente, pagando a conta, minha e a do casal. Pedi reserva à
senhorita do caixa. “Diga apenas que foi um amigo!”
Voltei ao meu lar, desta feita com os ouvidos tomados pelo som das
sucessivas declarações de amor daquele casal. Lá, eu me encontraria com a
minha amada, e tangeria para longe as minhas preocupações quanto às
ferrugens no amor. Enquanto houver um casal apaixonado, ele resistirá, e
haverá esperança de que possa revigorar o de outros também.
Seria o verdadeiro amor inoxidável?

Clauder Arcanjo — Professor
clauder@pedagogiadagestao.com.br

Texto publicado no jornal Gazeta do Oeste (Mossoró-RN), caderno Expressão,
espaço Questão de Prosa, edição de 4 de maio de 2008.

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