Da arte de maternar
Clauder Arcanjo
Miriam Carrilho me escreveu falando de Zuleide Duarte.
— Clauder, você conhece Travo, de Zuleide? Um primor.
As pessoas sempre acham que eu deva conhecer tudo em literatura. Penso que
é devido ao meu mister de resenhista literário.
Em poucos dias, recebo uma nótula de Zuleide, pela Internet. “Mais uma
amizade tecida pelo fio de carinho da Penépole potiguar radicada em chão
pernambucano!”; concluo.
Trocamos percepções e endereços. Na mesma semana, a chegada, em minha
casa, do livro de contos Da arte de maternar e outras artes, Recife:
Editora Baraúna, 2005.
Viajo para o Rio, e levo em minha bagagem os contos de Zuleide. Na
contracapa, algumas informações relativas à autora. “Zuleide Duarte é
professora de Literatura de Língua Portuguesa. Publicou os livros: Travo
(novela), Leituras luso-brasileiras (ensaios), D’Eça e d’outros
(ensaios)... É colaboradora de revistas nacionais e estrangeiras.
Participou do Dicionário Temático da Lusofonia, publicado em Lisboa pela
Editora Texto, em 2005.”
Da arte de maternar traz apresentação de Jaci Bezerra, e Jaci nos
confidencia: “... poucas pessoas conheci tão devotas à literatura como
Zuleide Duarte. Tudo que constitui literatura — contos, romances, poesia,
ensaios, incluindo-se as artes, constitui para ela matéria de interesse.
Creio que Zuleide Duarte morreria se não pudesse ler.”
Pouco adiante, mais alguns dados preciosos acerca de Zuleide Duarte:
“Professora, ensaísta e devota dos livros, Zuleide também é ficcionista. E
dessas ficcionistas que depois que escrevem parecem sentir ciúme do que
escrevem.”
No conto de abertura, “Amor e alfarrábios”, uma largada de qualidade:
“Quando ela entrou sentiu a formalidade no ar. O ambiente austero daquele
setor de documentos especiais da Biblioteca de... imprimia respeito, tal a
gravidade das pessoas que ali estavam.” Continuei a leitura, certo de
encontrar outras boas surpresas na história.
“Não se diz adeus quando os suores se misturaram, os líquidos corporais se
perderam no caminho, o prazer eternizou o encontro. Ficou a tatuagem do
corpo... no corpo, na alma...
Criação e descanso. Verbo se fez carne.”
Realmente, Duarte é exímia no jogo da linguagem. Como bem anunciou Jaci
Bezerra: “Uma linguagem solta e ao mesmo tempo precisa, diálogos diretos,
concisão, e um corrosivo senso de humor.”
“Isto mesmo. Uma vida de incredulidade. Homem em missa de sétimo dia, se
ele for o morto. Vivo, distância. Amargava a decepção do casamento
desfeito há três décadas.” Desta forma, somos levados, de roldão, pela
arte de narrar de Zuleide, ao centro do drama de “Antiga ternura”.
Em várias passagens, um quê de riso assomava aos meus lábios. Vou relatar
aqui o porquê. “Está brincando comigo? Já passei dos cinqüenta e você deve
cuidar dos achaques porque já deve ter sessenta. E dois, minha senhora,
mas um coração de jovem.”; eis um exemplo pinçado de “Antiga ternura”.
“E tudo plasticamente trabalhado. Sem excessos nem exageros. Pela síntese,
pelos títulos, pela escolha dos personagens, tudo é tão leve, apesar de
real, que até a maldade tem graça”; comenta Jaci na apresentação.
Os dramas femininos se destacam ao longo do livro. Em “Da arte de narrar”,
encontramos a mestria de, em poucas palavras, construir a cena e definir a
personagem, habilidades imprescindíveis em quem se propõe ao mister de
contista. “O corpo de morena fornida nunca se aqueceu nos masculinos
calores. Mas foi mãe de muitos filhos dos outros, acompanhando levas de
sobrinhos, netos, parentes e aderentes.”; dá-se assim o início desse
conto.
Uma boa e criativa mistura de relatos. Alguns mais regionais, outros com
forte viés psicológico, porém, em cada um deles, estamos perante a uma
escriba zelosa com a sua arte narrativa, a analisar o intestino dos dramas
humanos. Como em “Dores”: “Adolescente, fora viver com os padrinhos. Ele,
médico. Ela, doméstica. Com um ano e meio, a madrinha se foi. O viúvo
encompridou os olhos, mas o bom senso o impediu de colher as primícias da
afilhada. Casado novamente, o homem deu cobro ao desejo, satisfeito. Carne
nova.”
Satisfeito, vejo-me a percorrer “Erro de cálculo” (“Morreu como viveu.
Parca de afetos. Da filha, um grito histérico. Dos outros, o nome riscado
na agenda.”); “Escolha”; “Fiat voluntas”; “Hay peligro”; “Não era daqui”;
“Náufragos” (“Os bens acumulados na mesquinhez da mesa, onde mal se matava
a fome...”), dentre outros.
Quem escreve como Zuleide Duarte expõe o cotidiano com a marca singular
dos mestres. E é sempre um prazer quando se conhece alguém que domina a
arte de maternar os leitores com o carinho dos devotados às letras.
Clauder Arcanjo — Professor
clauder@pedagogiadagestao.com.br
Texto publicado no jornal Gazeta do Oeste (Mossoró-RN), caderno Expressão,
espaço Questão de Prosa, edição de 11 de maio de 2008.
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