A resistência de Sabato
Clauder Arcanjo
Deparei-me, dias atrás, com mais um livro do argentino Ernesto Sabato: A
resistência.
Em forma de cartas aos jovens leitores, o autor de O túnel realiza um
balanço pessoal de nossos dias. Com uma espécie de “coragem que nos situa
na verdadeira dimensão do homem”, no entanto há nele “uma coisa que não
falha, e é a convicção de que — unicamente — os valores do espírito podem
nos resgatar deste terremoto que ameaça a condição humana”.
Preocupado com o relacionamento virtual que grassa na sociedade
contemporânea, Ernesto declara que “à medida que nos relacionamos de forma
mais abstrata, vamos nos afastando do coração das coisas, e uma
indiferença metafísica se apossa de nós, enquanto entidades sem sangue nem
nome tomam o poder. Tragicamente, o homem está perdendo o diálogo com os
demais e o reconhecimento do mundo que o rodeia, quando é nele que se dá o
encontro, a possibilidade do amor, os gestos supremos da vida”.
A televisão é objeto de análise de Sabato, preocupado pela tendência da
humanidade, “por falta de coisa melhor”, em ficar anestesiada, horas a
fio, frente a essa tela que nos “predispõe à abulia”. “Ficar monotonamente
sentado diante da televisão anestesia a sensibilidade, torna a mente
lerda, prejudica a alma”; assevera o romancista de Sobre heróis e tumbas.
Contudo, Sabato não sucumbe ao pessimismo e à paralisia, acredita piamente
em que “há um jeito de contribuir para a proteção da humanidade, e é não
se conformar. Não assistir com indiferença ao desaparecimento da infinita
riqueza que forma o universo que nos rodeia, com suas cores, sons e
perfumes”. Ao longo da obra, sinais evidentes de que, na visão do pensador
argentino, “não há outro modo de atingir a eternidade a não ser
aprofundando-se no instante, nem outra forma de chegar à universalidade
que não através da própria circunstância: o aqui e agora”. Como?
“Revalorizando o pequeno lugar e o breve tempo em que vivemos, que nada
têm a ver com as maravilhosas paisagens que podemos ver na televisão, mas
que estão sagradamente impregnados da humanidade das pessoas que neles
vivem.”
De quando em vez, volta as suas baterias contra o risco da competitividade
desumana. “Se nos tornarmos incapazes de criar um clima de beleza no
pequeno mundo ao nosso redor e só atentarmos às razões do trabalho, muitas
vezes desumanizado e competitivo, como podemos resistir?”; inquire-nos.
Ler Sabato é um prazer singular. Arguto e inteligente, discorre sobre
diversos temas como um virtuose, hábil no manejo das palavras e das
idéias. Nada de opiniões áridas e mal formuladas, mas sim uma coletânea
meditativa de bela tessitura poética, “solidamente ancorada na tradição
humanística e no estudo crítico da história”.
Nascido em 1911 em Rojas, na província de Buenos Aires, Ernesto Sabato
doutorou-se em física, trabalhou em pesquisas em Paris, antes de se
dedicar ao mundo das letras e da pintura. Militante ativo pelos direitos
humanos na Argentina e no mundo, foi o principal responsável pelo
relatório acerca da tortura no regime ditatorial argentino, transformado
no livro Nunca mais.
Ao se aproximar dos cem anos, “permanentemente inquieto e inconformado”,
Ernesto Sabato concebe mais um livro, desta feita destinado a fomentar a
existência de “outros seres tão perplexos como ele diante da desumanização
do homem em nosso tempo”. “O homem se expressa para chegar aos outros,
para sair do cativeiro de sua solidão. Sua natureza de peregrino é tal que
nada preenche seu desejo de expressão”; observa.
Vou lendo e colhendo ensinamentos de um homem que “parece resistir a esse
trágico processo preservando a eternidade da alma na humildade de uma
prece”. Na forma de uma conversa muito pessoal, como bem caracteriza as
‘cartas’ de Sabato. “Com a idade que tenho hoje, posso dizer,
dolorosamente, que toda vez que perdemos um encontro humano uma coisa se
atrofiou em nós, ou se quebrou.” — afirma.
“Temos de reaprender o que é satisfação. Estamos tão desorientados, que
achamos que satisfazer-se é ir às compras. Um luxo verdadeiro é um
encontro humano, um momento de silêncio diante da criação, fruir de uma
obra de arte ou de um trabalho bem-feito.” — revela-nos o mestre de Antes
do fim.
As armas que se nos apresenta para essa batalha diuturna contra a
mediocridade a que nos querem condenar: “a dignidade, o desinteresse, a
grandeza diante da adversidade, as alegrias simples, a coragem física e a
integridade moral”. Para que a vitória se dê, há de se consumar entre nós,
como “ápice do comportamento humano”, o exercício da solidariedade, pois
“quando a vida é sentida como um caos, quando já não há um Pai que nos
faça sentir irmãos, o sacrifício é despojado do fogo que o alimenta”.
Páginas à frente, a defesa inconteste dos mitos. “Assim como uma casa
cujos alicerces se desmancham, as sociedades começam a desmoronar quando
seus mitos perdem a riqueza e o valor.” Ao tempo em que professa:
“Defronte a questões inefáveis, é infrutífero tentar aproximar-se por
meios de definições. A incapacidade dos discursos filosóficos, teológicos
ou matemáticos para responder a essas grandes interrogações revela que a
condição última do homem é transcendente e, por isso, misteriosa,
inapreensível.”
Testemunhos de um resistente homem de letras, ferrenho defensor da
liberdade e do papel transcendente e redentor da arte. “A arte foi o porto
definitivo onde preenchi meus anseios de navio sedento e à deriva.”
Se são cartas ingênuas? Não sei, mas o próprio Sabato, penso, dá-nos a
melhor resposta quando anuncia: “Os grandes artistas são pessoas estranhas
que conseguiram preservar no fundo da alma essa ingenuidade sagrada dainfância e dos homens que chamamos primitivos, e por isso provocam o riso
dos imbecis.”
Realmente, “o mundo nada pode contra um homem que canta na miséria”.
Clauder Arcanjo — Professor
clauder@pedagogiadagestao.com.br
Texto publicado no jornal Gazeta do Oeste (Mossoró-RN), caderno Expressão,
espaço Questão de Prosa, edição de 20 de julho de 2008.
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