E Acácio conheceu a politicalha
Clauder Arcanjo
Um ano e meio que eu não o via. Exatos dezoito meses sem ter com ele um
dedo sequer de prosa. Domingo último, quase nove horas da noite, cruzo a
cidade e encontro Companheiro Acácio numa esquina do Centro. Cabisbaixo,
fitando o chão de uma forma displicente, a cismar com o nada.
De início, quase não o reconheci. Isso, dado que o mesmo, amigo das vestes
mais formais, portava, desta feita, uma camisa de campanha. Recheada de
adesivos e de palavras de ordem de um candidato a vereador.
— Companheiro Acácio!... — saudei-o. Sempre me vejo tomado pela alegria
mais efusiva quando o reencontro. Acácio é, mesmo distante, pessoa
bastante próxima. Um amigo íntimo, daqueles que dispensam o convívio
diuturno, diria até.
Levantou a face lívida, e arrepiei-me do que vi estampado em seu rosto.
Ali estava um espectro político, arrematei de chofre.
De imediato, concluí que seu candidato fora infeliz nas urnas, e me
preparei para serenar-lhe a decepção.
— Como vão as coisas, companheiro?
Nada me respondeu, apenas um muxoxo escapou-lhe por entre os lábios. Os
olhos quedos falaram-me tudo. Cuidei de levá-lo para casa.
— Vamos, preciso falar-lhe algumas coisas. Faz tempo que corro a cidade à
sua procura. Preciso dos seus conselhos.
— Dos meus conselhos?!... — saltou, incrédulo.
— Sim, dos seus conselhos. Em casa, darei mais detalhes.
Pus-lhe a mão no ombro, e conduzi-o para o meu carro, estacionado numa
esquina próxima. Ele enrolou a bandeira que portava, e deixou-se levar.
Senti que arrastava os pés. A pele queimada pelo sol da campanha e o
cabelo desgrenhado mal deixavam perceber a figura sempre polida e elegante
do companheiro de guerra. Notei-o mais magro do que da última vez em que
estivera com ele, meados do ano passado. “A política lhe fez mal!” Tal
pensamento correu-me o cérebro, mas o prendi lá, antes que ele fizesse
menção de escapar pela boca.
Rumei para casa. Em cada esquina, fogos a anunciar os eleitos. O domingo
fora de eleição, e agora, contados os votos, era o momento da celebração
dos escolhidos nas urnas.
Percebi que Acácio se incomodava com os sinais de festa. Por diversas
vezes levou as duas mãos aos ouvidos, para não escutar o estampido dos
fogos.
Como moro um pouco fora do Centro, distante das avenidas principais,
tranqüilizei-me com a decisão que tomara. “Lá ele ficará bem, e poderemos
conversar mais à vontade.”
Estacionando o carro na garagem, abri a porta do passageiro para que o
Companheiro descesse; ele não se mexeu. Impassível, desligado do mundo.
— Chegamos, Companheiro Acácio! Vamos tomar um chá com torradas. Não é a
sua bebida preferida antes de se entregar ao sono dos justos?
— Sono dos justos!... Servir com justiça!, foi o seu primeiro lema! —
exclamou com um ar de profundo desalento.
Evitei falar-lhe antes do chá. O melhor a fazer quando nos deparamos com
alguém em estado de torpor intenso é serenar-lhe a alma, nada de incitar o
diálogo em meio à tempestade. Na calmaria, penso eu, tudo melhor se
explica.
Chamei por minha esposa, e anunciei a presença do Companheiro.
— Filha, sei que é tarde, mas nos faça um favor: prepare-nos um chá de
camomila. Forte, e com torradas, se possível. Pisquei-lhe o olho esquerdo,
nosso costumeiro sinal de alerta máximo.
Em poucos minutos, o chá era servido. Notei que Acácio sorveu alguns
goles, e evitou as torradas, afundando-se na poltrona da varanda.
Casmurro, melhor, silente, com os olhos voltados para dentro de si.
— O que houve, Companheiro? Alguma decepção? — indaguei-lhe sem delongas.
— Decepção, decepção, decepção... — proferiu por três vezes tal palavra,
entregando-se às lágrimas.
Odeio ver alguém em dor, em especial se se trata de alguém da minha
estima. Optei pela espera, sabia-o em sofrimento, e o desabafo, com chá e
torradas, lhe faria bem.
Em minutos, a voz forte e singular despejou o motivo do abalo.
— Sempre vi na política a excelsa forma de servir ao povo. É claro que
nunca me arvorei a ser candidato. Este ano, tomado pelo discurso de um
candidato a vereador, resolvi pôr meu bloco na rua. De início,
empolguei-me com a sua plataforma de campanha: justiça e educação. Não
medi esforços, varei ruas, becos e vielas levando tal proposta. Ele me
parecia bem-intencionado. E me entreguei cada vez mais. Ele me ouvia, e eu
a defender, com ardor, que tínhamos a obrigação de oferecer algo novo: o
povo precisa de uma opção consciente. Nos primeiros quinze dias, tudo
foram flores. Com mais um pouco, já o vi em hábitos não adequados para
quem anunciava ser um servidor do bem comum. Preferi fingir não perceber.
Dias depois, só saía às ruas com o bolso recheado de cédulas. Passei a
dividir o comitê com um exército de pessoas “abnegadas por dinheiro”. E,
ao fim, o conchavo e a adesão pecuniária deram o ritmo final da campanha.
Quando dei por tudo, quis chamar-lhe aos bons modos. Era quase véspera do
pleito, e ele me pediu para sentar. Junto dele, um marqueteiro. Foi este
que usou da palavra. Lembro-me perfeitamente: “Companheiro Acácio, escute.
Não podemos fazer política da forma que você defende. Não estamos num jogo
de cordeiros. Se ficarmos parados, seremos moídos, além de comidos, pelos
lobos. Haveremos de ganhar, de qualquer forma, para pormos em prática os
nossos conceitos. Por exemplo, baseado em pesquisa, o nosso candidato tem
plataformas móveis. Dependendo da região, uma proposta, alinhada com o que
o eleitor sinaliza.” Foi dizendo isso e abrindo uma pasta. Dentro um tomo
com uma infinidade de números de sondagem. Junto a cada tabela, um “lema
móvel”. Vi bem que “justiça e educação” fora deixado de lado. Saí para as
ruas, e rodei sem rumo a noite toda. Quando voltei ao comitê, exigi uma
conversa com o candidato. Ele alegou compromissos inadiáveis, bateu no meu
ombro e me pediu tranqüilidade. “Tudo vai dar certo!” Saiu nos braços do
“povo pago para lhe aplaudir”. “Nossa militância!”, na definição do
marqueteiro.
Um pesado silêncio habitou entre nós, rompido de quando em vez pelo
espocar dos fogos de artifício.
— Companheiro Acácio, tenha calma. Tome mais um chazinho.
— E o pior é que ele se elegeu, amigo. E, ao procurá-lo para lhe cobrar,
como primeira declaração após o pleito, o compromisso com a justiça e a
educação, ele me sorriu irônico, arrematando: “Levarei para a Câmara de
Vereadores o meu compromisso com uma política móvel, Acácio!...”
Politicalha, politicalha... caí feito um pato nos braços sujos da
politicalha, meu caro!
Lágrimas copiosas marcavam a face dorida de Acácio. E eu não tive forças,
nem argumentos, para secar-lhe o pranto.
Clauder Arcanjo — Professor
clauder@pedagogiadagestao.com.br
Texto publicado no jornal Gazeta do Oeste, caderno Expressão, espaço
Questão de Prosa, edição de 12 de outubro de 2008
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