"Órfãos reversos"-Joaquim Crispiniano Neto-Jornal de Fato, julho/2020.
O ciclo de uma semana se fechou na última quarta-feira, 22, desde quando, na manhã do 16 próximo passado, Deus chamou minha filha Penélope para outra dimensão. Hoje, crio coragem para voltar ao batente desta coluna, agradecendo piamente a todos e todas que se solidarizaram das mais diversas formas comigo e com a família na dor da despedida e, acima de tudo, torceram, oraram, vibraram energias positivas na longa jornada de 51 dias, na luta de Penélope pelo restabelecimento da saúde. Homem amadurecido e curtido pelos revezes da vida, acostumado aos contratempos do desassossego colhido nos embates e démarches da vida, venho resistindo como posso, chorando menos do que devia, orando mais do que costumo e refletindo muito em busca da compreensão desta inversão do ritmo da vida em que se convencionou que os filhos se encarregam da despedida dos pais e não o contrário. Tanto que, como me lembrou o Padre Guimarães, o dramaturgo Pedro Bloch em “‘Esta noite choveu Prata’ registra que a nossa língua com os 400 mil verbetes do Dicionário Aurélio, talvez, todas as outras línguas também, tem a palavra ‘órfão” para definir o filho que perde o pai, mas não possui nenhuma palavrinha para definir o pai que perde um filho ou filha... Diante de 54 dias de angústias, um de agonia e sete de saudades doloridas, não tenho como me livrar da imagem daquela mulher pedinte nos longes da minha adolescência, ao pedir uma esmola a um homem que estava do meu lado, há mais de 50 anos. Ele foi grosseiro na negativa e ela retrucou com a calma e a diplomacia dos que são revoltados, mas sabem que não terem vez, também não têm direito à voz. Num sussurro tímido, porém, contundente, ela, tirando o surrado cachimbo da boca, sob a sombra do pano que cobria a cabeça como uma romeira, sentenciou por entre as rugas que lhe vincavam a pele sofrida do rosto: “Deus te dê o sossego das águas do mar...”. Não creio que aquele homem estúpido, com seu cérebro estreitado pelas costeletas arrogantes, a camisa quadriculada de tremendão e o cinto de fivelão, chegado que era há poucos dias do Rio de Janeiro, em sua extrema pobreza d’alma possa ter entendido uma resposta tão profunda. Senti o peso da sentença e, vez por outra, sempre que as águas do mar da vida querem me afogar lembro aquela frase, repetidamente com a sensação de que a condenação consuetudinária recaiu sobre mim e não sobre o carrasco daquela mulher. Reajo e não deixo a tristeza da lida me afogar. Não temo, sigo adiante e vou acumulando lições, segurando na mão de Deus e andando com fé, que a fé não costuma “faiá”. Fé na vida, fé no que virá, já que hoje é semente do amanhã e não o contrário. Por isso, não me desespero, não paro de sonhar, não me entrego e me esforço para deixar nascer sempre com as manhãs, a luz do sol brilhar no céu do meu olhar, cada vez que a terra cumpre o seu movimento de rotação a cada 24 horas. Muitos têm me perguntado se Penélope era filha única. O que dizer, se tenho mais dois filhos amados? Mas, respondo que sim, que era a única filha mulher e sendo a única filha, tinha seu jeito próprio de ser filha única. O amigo Francisco Cabeleireiro, amante da poesia como eu, escreveu que, conforme a conhecida frase feita “A vida é feita de escolhas”, mas que há momentos de imposições na vida. Perder um filho (a) é um jogo sem direito de escolha. O jogo do perder ou perder... Quando trabalhei na Gazeta do Oeste, entre tantos colegas, tinha Hernegildo, do Departamento Comercial e Gutemberg Moura, jornalista. Hernegildo repetia sempre uma frase que nunca tive a curiosidade de perguntar de onde ele a tinha tirado: “Feliz é quem vai ao cemitério e volta”. Até o dia em que Berg levantou a cabeça e disse: “Você diz isso porque nunca foi lá sepultar um filho...”. Eu, que nunca tinha amargado esta verdade dura na prática, senti o golpe na hora. Imagine-se agora, que sei o que é ver uma filha amada descer à mansão dos mortos. Agora sinto cada palavra rasgando as fibras do meu coração. A cada passo, perscrutando a imensidão do vazio, a materialidade da ausência, o peso poético da saudade, lembro mais uma vez Eduardo Galeano n’O Livro dos Abraços, “Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovakloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Pai, me ensina a olhar! Exercitar o olhar para ver e ler a ausência tem sido meu exercício diário, desde a pancada da notícia. Lembrando o alerta do Cacique de Seatle, de que não podemos deixar “Para trás os túmulos dos antepassados sem se incomodar”. Vi Penélope se somar ao meu pai Zé Ireno e minha tia Pepinha no mesmo endereço de uma catacumba do Cemitério de São Sebastião, sabendo que ela agora virou “uma estrelinha no céu”, como disse minha nora ao filho Arthurzinho de seis anos, que, de rosto sombrio respondeu doloridamente: “Entendi”. Penélope, Rainha de Ítaca, prima de Helena de Troia e esposa de Ulisses, na Odisseia de Homero é a metáfora da espera e da tecelagem da vida em roca e tear, forjando e vendo desfazer-se a cada noite a obra feita no dia que se foi. Vinte anos de espera por Ulisses, entre a guerra em Troia e a viagem de volta, quase sem fim e tão cheia de peripécias. Aos 64 de vida não sei se Deus ainda me concederá mais vinte para cuidar a memória de Penélope Domitila. E tocar seus projetos de vida no instituto sócio cultural e educativo, que pretendo criar, em sua homenagem, mesmo não tendo a mínima ideia de onde virão os recursos materiais. Mas... Como fazer de conta que não sabemos que “querer é poder”? Haveremos de tecer sonhos e desatar os nós da realidade, como Penélope de Ítaca, desafiando os desafios... Mais forte que todas as dificuldades, reverbera em meus ouvidos a voz daquela mãe que, nos últimos instantes da despedida, lembrou como Penélope Domitila fez a sua filha especial aprender a ler e escrever, missão que já começava a considerar impossível. Pego-me ouvindo e cantando sem voz, à moda de Chico Rita, meu primeiro barbeiro lá em Santo Antonio do Salto da Onça que nos cortava os cabelos assoviando sem que nenhum som se produzisse além do sopro. É assim que me pego solfejando “Pedaço de mim”, do sempre Chico Buarque, garatujando trechos, versos, pés: “Oh, pedaço de mim/ Oh, metade afastada de mim/ Leva o teu olhar/ Que a saudade é o pior tormento/ É pior do que o esquecimento/ (...) Leva os teus sinais/ Que a saudade dói como um barco/ Que aos poucos descreve um arco/ E evita atracar no cais/ (...) A saudade é o revés de um parto/ (...) Oh, metade amputada de mim/ Leva o que há de ti/ Que a saudade dói latejada/ É assim como uma fisgada/ No membro que já perdi... José Luiz, poeta e advogado, tio de Penélope disse muito em duas estrofes na missa de sétimo dia: Disse Deus a Penélope: “Vens ligeiro! ” - “Resolvi te trazer nesta remessa! Pois eu sou jardineiro e jardineiro Colhe as flores mais lindas, mais depressa... Tua alma exalava compaixão, Paz, amor, piedade, luz, perdão E nela misericórdia eu também vi; Eu não erro o olfato nem o olho... Quando a flor cheira ao bem, Eu cedo colho... Foi por isto que Eu cedo te colhi”. UTI, uma lágrima derramou-se E essa lágrima falou, em vez da voz... Uma lágrima salgada, mas tão doce, Que adoçou o viver de todos nós... Foi Penélope no seu itinerário... Em janeiro é o seu aniversário! Lá no céu terá bolo, canto e luz; Essa festa nos serve de consolo: É Penélope quem vai cortar o bolo E o primeiro pedaço é pra Jesus! Não tendo, portanto, uma palavra no idioma pátrio para significar o pai que perde um filho ou filha, cravo aqui uma expressão que, mesmo que não exista passa a definir a mim, a Lúcia e a todos os que carregarão para a travessia da Praça da Saudade, a lembrança lacrimosa do filho que partiu primeiro. Somos “Órfãos reversos”. E temos que aprender a ouvir o filho ido, pelas palavras de Santo Agostinho: “Eu não estou longe, apenas estou do outro lado do Caminho... Você que aí ficou, siga em frente, a vida continua, linda e bela como sempre foi." Muita fé, para continuar a levar a vida." Crispiniano Neto
O ciclo de uma semana se fechou na última quarta-feira, 22, desde quando, na manhã do 16 próximo passado, Deus chamou minha filha Penélope para outra dimensão. Hoje, crio coragem para voltar ao batente desta coluna, agradecendo piamente a todos e todas que se solidarizaram das mais diversas formas comigo e com a família na dor da despedida e, acima de tudo, torceram, oraram, vibraram energias positivas na longa jornada de 51 dias, na luta de Penélope pelo restabelecimento da saúde. Homem amadurecido e curtido pelos revezes da vida, acostumado aos contratempos do desassossego colhido nos embates e démarches da vida, venho resistindo como posso, chorando menos do que devia, orando mais do que costumo e refletindo muito em busca da compreensão desta inversão do ritmo da vida em que se convencionou que os filhos se encarregam da despedida dos pais e não o contrário. Tanto que, como me lembrou o Padre Guimarães, o dramaturgo Pedro Bloch em “‘Esta noite choveu Prata’ registra que a nossa língua com os 400 mil verbetes do Dicionário Aurélio, talvez, todas as outras línguas também, tem a palavra ‘órfão” para definir o filho que perde o pai, mas não possui nenhuma palavrinha para definir o pai que perde um filho ou filha... Diante de 54 dias de angústias, um de agonia e sete de saudades doloridas, não tenho como me livrar da imagem daquela mulher pedinte nos longes da minha adolescência, ao pedir uma esmola a um homem que estava do meu lado, há mais de 50 anos. Ele foi grosseiro na negativa e ela retrucou com a calma e a diplomacia dos que são revoltados, mas sabem que não terem vez, também não têm direito à voz. Num sussurro tímido, porém, contundente, ela, tirando o surrado cachimbo da boca, sob a sombra do pano que cobria a cabeça como uma romeira, sentenciou por entre as rugas que lhe vincavam a pele sofrida do rosto: “Deus te dê o sossego das águas do mar...”. Não creio que aquele homem estúpido, com seu cérebro estreitado pelas costeletas arrogantes, a camisa quadriculada de tremendão e o cinto de fivelão, chegado que era há poucos dias do Rio de Janeiro, em sua extrema pobreza d’alma possa ter entendido uma resposta tão profunda. Senti o peso da sentença e, vez por outra, sempre que as águas do mar da vida querem me afogar lembro aquela frase, repetidamente com a sensação de que a condenação consuetudinária recaiu sobre mim e não sobre o carrasco daquela mulher. Reajo e não deixo a tristeza da lida me afogar. Não temo, sigo adiante e vou acumulando lições, segurando na mão de Deus e andando com fé, que a fé não costuma “faiá”. Fé na vida, fé no que virá, já que hoje é semente do amanhã e não o contrário. Por isso, não me desespero, não paro de sonhar, não me entrego e me esforço para deixar nascer sempre com as manhãs, a luz do sol brilhar no céu do meu olhar, cada vez que a terra cumpre o seu movimento de rotação a cada 24 horas. Muitos têm me perguntado se Penélope era filha única. O que dizer, se tenho mais dois filhos amados? Mas, respondo que sim, que era a única filha mulher e sendo a única filha, tinha seu jeito próprio de ser filha única. O amigo Francisco Cabeleireiro, amante da poesia como eu, escreveu que, conforme a conhecida frase feita “A vida é feita de escolhas”, mas que há momentos de imposições na vida. Perder um filho (a) é um jogo sem direito de escolha. O jogo do perder ou perder... Quando trabalhei na Gazeta do Oeste, entre tantos colegas, tinha Hernegildo, do Departamento Comercial e Gutemberg Moura, jornalista. Hernegildo repetia sempre uma frase que nunca tive a curiosidade de perguntar de onde ele a tinha tirado: “Feliz é quem vai ao cemitério e volta”. Até o dia em que Berg levantou a cabeça e disse: “Você diz isso porque nunca foi lá sepultar um filho...”. Eu, que nunca tinha amargado esta verdade dura na prática, senti o golpe na hora. Imagine-se agora, que sei o que é ver uma filha amada descer à mansão dos mortos. Agora sinto cada palavra rasgando as fibras do meu coração. A cada passo, perscrutando a imensidão do vazio, a materialidade da ausência, o peso poético da saudade, lembro mais uma vez Eduardo Galeano n’O Livro dos Abraços, “Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovakloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Pai, me ensina a olhar! Exercitar o olhar para ver e ler a ausência tem sido meu exercício diário, desde a pancada da notícia. Lembrando o alerta do Cacique de Seatle, de que não podemos deixar “Para trás os túmulos dos antepassados sem se incomodar”. Vi Penélope se somar ao meu pai Zé Ireno e minha tia Pepinha no mesmo endereço de uma catacumba do Cemitério de São Sebastião, sabendo que ela agora virou “uma estrelinha no céu”, como disse minha nora ao filho Arthurzinho de seis anos, que, de rosto sombrio respondeu doloridamente: “Entendi”. Penélope, Rainha de Ítaca, prima de Helena de Troia e esposa de Ulisses, na Odisseia de Homero é a metáfora da espera e da tecelagem da vida em roca e tear, forjando e vendo desfazer-se a cada noite a obra feita no dia que se foi. Vinte anos de espera por Ulisses, entre a guerra em Troia e a viagem de volta, quase sem fim e tão cheia de peripécias. Aos 64 de vida não sei se Deus ainda me concederá mais vinte para cuidar a memória de Penélope Domitila. E tocar seus projetos de vida no instituto sócio cultural e educativo, que pretendo criar, em sua homenagem, mesmo não tendo a mínima ideia de onde virão os recursos materiais. Mas... Como fazer de conta que não sabemos que “querer é poder”? Haveremos de tecer sonhos e desatar os nós da realidade, como Penélope de Ítaca, desafiando os desafios... Mais forte que todas as dificuldades, reverbera em meus ouvidos a voz daquela mãe que, nos últimos instantes da despedida, lembrou como Penélope Domitila fez a sua filha especial aprender a ler e escrever, missão que já começava a considerar impossível. Pego-me ouvindo e cantando sem voz, à moda de Chico Rita, meu primeiro barbeiro lá em Santo Antonio do Salto da Onça que nos cortava os cabelos assoviando sem que nenhum som se produzisse além do sopro. É assim que me pego solfejando “Pedaço de mim”, do sempre Chico Buarque, garatujando trechos, versos, pés: “Oh, pedaço de mim/ Oh, metade afastada de mim/ Leva o teu olhar/ Que a saudade é o pior tormento/ É pior do que o esquecimento/ (...) Leva os teus sinais/ Que a saudade dói como um barco/ Que aos poucos descreve um arco/ E evita atracar no cais/ (...) A saudade é o revés de um parto/ (...) Oh, metade amputada de mim/ Leva o que há de ti/ Que a saudade dói latejada/ É assim como uma fisgada/ No membro que já perdi... José Luiz, poeta e advogado, tio de Penélope disse muito em duas estrofes na missa de sétimo dia: Disse Deus a Penélope: “Vens ligeiro! ” - “Resolvi te trazer nesta remessa! Pois eu sou jardineiro e jardineiro Colhe as flores mais lindas, mais depressa... Tua alma exalava compaixão, Paz, amor, piedade, luz, perdão E nela misericórdia eu também vi; Eu não erro o olfato nem o olho... Quando a flor cheira ao bem, Eu cedo colho... Foi por isto que Eu cedo te colhi”. UTI, uma lágrima derramou-se E essa lágrima falou, em vez da voz... Uma lágrima salgada, mas tão doce, Que adoçou o viver de todos nós... Foi Penélope no seu itinerário... Em janeiro é o seu aniversário! Lá no céu terá bolo, canto e luz; Essa festa nos serve de consolo: É Penélope quem vai cortar o bolo E o primeiro pedaço é pra Jesus! Não tendo, portanto, uma palavra no idioma pátrio para significar o pai que perde um filho ou filha, cravo aqui uma expressão que, mesmo que não exista passa a definir a mim, a Lúcia e a todos os que carregarão para a travessia da Praça da Saudade, a lembrança lacrimosa do filho que partiu primeiro. Somos “Órfãos reversos”. E temos que aprender a ouvir o filho ido, pelas palavras de Santo Agostinho: “Eu não estou longe, apenas estou do outro lado do Caminho... Você que aí ficou, siga em frente, a vida continua, linda e bela como sempre foi." Muita fé, para continuar a levar a vida." Crispiniano Neto
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