sexta-feira, 20 de junho de 2008

PROSA DA QUARTA POR CLAUDER ARCANJO

Chuva junina

Clauder Arcanjo

O domingo passado acordou numa malemolência indolente. As nuvens, azuis e
recendendo a inverno prolongado, encobriram o sol, como a nos lembrar que
era dia de preguiça, de ficar na cama até um pouco mais tarde.
Em dias assim, dá-me uma vontade danada de cometer malandrices. Nada das
grandes faltas, apenas o desleixo ocasional e fortuito, a graça do tempo
livre, sem lembranças do reinado do relógio. Explicarei melhor.
Com a chuva fina, brota em nós um laivo de poeta. Compulsão de pôr em
páginas floridas um arremedo de poema romântico, falando de amores
trágicos, alcovas indevassáveis, donzelas de voz canora, e coisa e tal.
Versos que pulsariam na alma incontida, tocada por uma manhã lavada, limpa
e prazerosa. Pouco importa a qualidade das estrofes (em manhãs de junho,
me parece, ninguém almeja a fama), mas a boa-fé que move o pretenso
menestrel da paixão.
Em domingos banhados pela mansuetude de uma invernia estranhamente
espichada, os casais bem que poderiam flanar pelas ruas. Sairiam de braços
dados, a receberem, em seus rostos marcados pela rotina, os pingos da
chuva rala que lavariam o ar, as ruas, os homens, as crianças e as
mulheres. Enfim, toda a cidade. Ao final da tarde, quando o sol que não
chegou anunciasse a sua pálida despedida, encontraria os enamorados a
desfilarem um amor limpo pelas praças floradas.
Outra coisa que poderia ocorrer em domingos desse tipo seria os homens de
negócio vestirem calções de banho, aposentando as roupas formais, e
receberem a bênção de um demorado banho de bica. Em banhos que trazem, em
enxurradas, os aguaceiros da infância. Tais catadupas molham o corpo,
além, em benfazejo jorro de memória, de nos enxaguarem o espírito. Ao
concluirmos a prática desta terapia-do-banho-de-chuva-aos-domingos, os
lábios seriam vistos como se germinados pela sementeira do sorriso dos
eleitos.
Pensei também em cometer a sublime arte de responder a toda e qualquer
pergunta que me dirigissem com outras perguntas. Voltando a praticar a
augusta filosofia da meninice. Nós, adultos, ao envelhecermos, cometemos a
insânia de abandonarmos tal engenho, e passamos a nos iludir com a busca
do âmago da vida nas respostas, nas ditas afirmações.
No meio do dia, bem sei, me invadiria uma vontade de fugir para o destino
mais incerto, com a minha Biscuí, e não ter hora nem plano para chegar,
muito menos para voltar. Lá, procuraríamos um casarão bem antigo, onde
ficaríamos enamorados numa rede de balanço, de olhos postos nos caibros e
ripas, a ouvirmos o barulho encantador da chuvarada nas telhas-vãs.
Domingo de junho com chuva no Nordeste, meu caro leitor, me leva a
conjecturas mil, a planos imponderáveis. Como almoço, o melhor seria me
servir de um peixe fresco, apanhado pela rede do pescador mais afoito.
Daqueles que se encantam com as graças do mar, e fazem do seu ofício a
colheita do sagrado segredo das ondas, que vêm e vão, e não se cansam de
render tributo à praia, apesar da indiferença dos homens e dos rochedos.
Como sobremesa, o doce em compota mais doce, daqueles há tempo proibidos e
banidos pelos códigos dos regimes de emagrecimento, verdadeiros atentados
contra a alma e a carne fraca dos pobres comensais. Lambuzados, riríamos
da nossa gula, e professaríamos nossa falta aos goles de uma caneca d’água
da quartinha, dormida e serenada, e, por conseguinte, a mais pura e fria.
É claro que, depois, dormiríamos uma sesta dos deuses. Daquelas
desprovidas de segundas responsabilidades, apenas o corpo abandonado ao
sabor da moleza que nos impõe uma refeição fausta. E roncaríamos. Sim,
roncaríamos. Nada expressa melhor a qualidade e a profundidade de uma
sesta do que o nível dos decibéis gerados por quem a ela, abençoadamente,
se entrega.
No meio da tarde, a chuva a pinicar lembranças e pachorra no nosso corpo
lasso, tomaríamos um café donzelo, em canecas de ágata, adoçado com
rapadura. Acompanhado de um cuscuz fresquinho, ou, no máximo, de uma
tapioca de receita cearense. Sem nos esquecermos da manteiga, que fique
aqui o registro. Terminada a refeição, com alguns quilos a mais na
balança, e um crédito suplementar de felicidade no juízo, tocaríamos para
uma rede na varanda. Lá, espiaríamos o canto do bem-te-vi, em contralto,
aparteado de quando em vez por um galo-de-campina, daqueles da cabeça de
fita bem vermelha, como saudávamos quando eu criança na longínqua e
querida Licânia. É lógico que não haveria espaço para os intrometidos e
metidos pardais. A eles, pelo menos por um domingo, pediríamos trégua. E,
por eles, seríamos atendidos.
Quando a noite caísse com a sua imensidão e os seus sortilégios, o coaxar
dos sapos nos traria as imagens dos príncipes dos contos de fada. Em cada
um deles, nada dos batráquios, mas, sim, a latência de um novo principado.
A chuva, persistente, ainda nos daria tempo para uma seresta em noite
chuvosa, dessas cantadas pela voz interior, molhadas pelas lágrimas do
adeus, acompanhadas pelo violão mais plangente, e benditas pela saudade.
O sono se achegaria em passos miúdos, os casais se enamorariam, dormindo
candidamente; e a madrugada prosseguiria, como se infinita, regada pela
dádiva de uma chuva junina.
Eu sei que a segunda-feira, com os seus compromissos insípidos e
inadiáveis, viria. Mas um domingo assim nos encanta com a utopia de uma
felicidade eterna, e como.

Clauder Arcanjo — Professor
clauder@pedagogiadagestao.com.br

Texto publicado no jornal Gazeta do Oeste (Mossoró-RN), caderno Expressão,
espaço Questão de Prosa, edição de 15 de junho de 2008.

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