NO MEIO DA TARDE
(Lívio Oliveira)
No meio da tarde, resolveram voltar.
Vieram buscando o caminho antigo, após a bifurcação, atalhando o trajeto em volta do açude. Parecia fácil.
A noite ia caindo. A pouca experiência dos meninos não aconselhava estender o tempo de pisada. A casa-grande não ficava assim tão perto.
Na conversa dos imberbes surgiam os fantasmas guardados, os medos do escuro repentino. Cada fala era de um arauto de pavores infantis, presos interiores das almas dos rapazotes.
Suas pernas eram só tremores e a estrada se prolongava, crescendo, crescendo. O barro pisado, prolongando-se sinuosamente, inquietava mais.
A terra seca já não queimava sob as solas dos pés ingênuos. Pedras de fogo não se faziam mais sentir quando encaixavam entre os dedos descalços. O medo é que se agigantava. Perguntavam o porquê da incauta decisão. Meninos da cidade, não sabiam bem os segredos do sertão.
Surgiram dúvidas quanto ao roteiro mais acertado. Cadê o açude?
No meio da dúvida, a Cruz de Miquilino, cravada à margem, arrodeada por uma coroa de flores plásticas, bizarra imagem. Miquilino tinha morrido ali mesmo, vítima de bala pequena de companheiro, caça imperita de avoantes. Acertou-lhe o frontal. A morte de Miquilino tinha abalado todo mundo, os moradores da fazenda, o povo da “rua”, como chamavam a cidade próxima, pequeno município de igreja só. Dona Inhana, sua mãe, quase enlouquecera de dor: – Por que fizeram isso com meu menino? Meu menino Miquilino! Doze anos, ai, ai, ai! Miquilino, ai, ai, ai!
Talvez o batráquio que atravessara longitudinalmente não tivesse a intenção, mas causou, causou mesmo, pânico e arrepios nos meninos, aqueles dois. Mais arrepios do que os que estavam acometendo aqueles corpos brancos e imberbes de filhos da cidade grande. Ah! Ali naquela terra, todo estranho bem nutrido e corado era rico, filho de rico, eleito por Deus. Principezinhos desta terra!
Não havia ainda sinal do açude, nem da porteira que terminasse a agonia dos dois moleques. Um choro baixo, nervoso, já tinha sido iniciado por um deles. O outro, ainda querendo mostrar um pingo de coragem, reclamava:
– Faz isso não, Rodolfo, seja homem! A gente já chega!
Os passos apressados, atravessados pelo gemido de Rodolfo, na luta para encontrar o mundo pequeno da fazenda, apressavam os coraçõezinhos tensos, aos saltos, na esperança de encontrar o rumo da fazenda, da casa alva, da rede áspera, menos áspera que o cinto do pai bruto, ligeiro no golpe, marcas avermelhadas ardendo depois. Costas e bundas ressentidas no outro dia! Dor no espinhaço!
Prosseguiam no ritmo alucinante. Às vezes queriam correr. Pouco prudente. Melhor caminhar juntos e evitar surpresas, ataques de alguma fera, medo de aparições vivas ou mortas!
Algum sinal surgiu. Da entrada da fazenda. Já iam para além das três horas de caminhada. Graças! Luz de lamparina lá longe, nos longes daquele tempo. O cheiro de esterco de gado, os ventos nas algarobas, a terra seca entrando nas narinas e sublinhando os lábios de poeira e mormaço. A audição perfeita do cancão. Tudo, toda dor, todo medo, já se abrandavam. À frente, a imagem do vestido branquinho da mulher jovem que ainda lavava no açude, quase escurecendo. Era Severina, Severina do Queijo, como era conhecida, pela sua atividade matinal de ajudar no coalho, no cozimento, no preparo do queijo, cujas raspas, com açúcar, faziam a felicidade da molecada toda.
Severina foi, então, o oásis mais feliz daqueles dois. A salvação, a volta para o seu mundo. Nenhuma fera os venceu! Nenhum defunto apareceu, com nariz cheio de algodão e olhos arroxeados! Estavam diante de Severina, salvos de onça e de alma!
Recolheram os medos nos bisacos. Ainda dava tempo até para um banho no açude. Meteram-se na água fria, gelatinosa, do açude. E foi aí que, além da salvação de suas vidas, Severina, lá perto da canoa aportada, sem avistá-los, salvou também suas mais profundas sensações. Já não lavava a trouxa de roupas, à parte. Banhava, lindamente, seu corpo rijo e moreno, apertando mais uma vez, muito forte, o ritmo dos dois coraçõezinhos de testemunha.
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