sábado, 4 de maio de 2019

NOS JARDINS DO SOLAR MUSEU FERREIRO TORTO A HISTÓRIA DA SINHAZINHA E O ESCRAVO




A Sinhazinha e o Escravo





Comentário



Meus filhos já conheciam essa triste história, que lhes foi contada durante suas visitas à Ferreiro Torto em passeios organizados pelas suas escolas na infância e também na adolescência. Enquanto adentrávamos pela alameda que leva ao solar, Victor Hugo lembrou-se da lenda e relatou um pouco em breves palavras. Patrícia admirou-se e comentou: você ainda se lembra dessa história? Eu fiquei empolgada porque não tive a oportunidade de ouvir esse dramático relato. Ao término da visitação, fui a uma das sacadas apreciar a visão preciosa da paisagem circundante da enorme construção, que abrigava os proprietários vários, que se sucederam no local, hoje tombado pelo Patrimônio Histórico e administrado pela eficiente Prefeitura de Macaíba/RN no Brasil. Ao meu lado, Canindé do Museu, presenteou-me com esse comovente fato, que ao certo, não se sabe, se foi real ou lenda. Mas como toda lenda vem de algum fato ocorrido e por se tratar da época escravocrata, podemos supor que ele tem tudo para ser real.



A lenda por Canindé do Museu e adaptada por Jania Souza





Há muito tempo atrás, tanto tempo que antecedeu a alforria da população escrava em Macaíba pelos abolicionistas potiguares e homens ilustres da terra em 1875, data antecessora a data oficial da libertação dos escravos no Brasil em 13 de maio de 1888, quando a Princesa Isabel assinou a Lei da Abolição da Escravatura, aconteceu esse triste fato, que passou a ser narrado às novas gerações pelos mais antigos.



No fidalgo Solar do Ferreiro Torto, morava abastada família. A bela e jovem filha do poderoso Senhor do lugar, certo dia, ao se debruçar da sacada em suas brincadeiras com suas mucamas, do alto, depara-se com belo jovem negro, que caminha na direção do casario por entre as plantas.



Seus olhos se cruzam e um fogo percorre o corpo de forma eletrizante de cada um deles. Sorriem institivamente encantados um com o outro. Ele de lá, ela cá em cima. Distantes por um grande espaço vazio, símbolo invisível da distância que os separava por causa dos preconceitos erguidos em torno das relações entre os seres humanos naquela época.



Preconceitos impostos pela sociedade edificada pelo homem branco dominador. O escravo não era considerado como gente e, sim, como um objeto de trabalho de seu pai, sendo um ser inferior, que não podia tomar decisões pela própria vida. Era um prisioneiro; por isso, ele não tinha recursos para oferecer a fim de o juntar ao patrimônio do senhorio, ampliando o poder desse, uma condição necessária naqueles tempos para se casar com o consentimento do pai; e, a discriminação racial, que os distanciava mais ainda por causa da cor da pele, trazia com ela toda essa história social e econômica de submissão ao dono.



Essa era uma época muito difícil para o amor entre pretos e mulheres brancas. Os donos dos escravos, senhores de suas famílias e das posses financeiras, além de brancos, descendentes dos colonizadores, detentores do poder, realmente podiam tudo, pois ditavam as leis em seus redutos territoriais e na organização das cidades e das províncias, essas foram transformadas em estados com a Proclamação da República Federativa do Brasil em 1889.



Eles se apaixonaram. Porém sabiam que esse amor era impossível, pois não seria aprovado pelo Senhorio deles. Ela, embora filha, por ser mulher, também não tinha direito de escolha para tomar decisões. Eles encontravam-se no mesmo patamar de falta de direitos em uma sociedade machista e escravocrata.



Como se sabe, o amor é cego a lógica do mundo, por isso, em sua paixão nascente de jovens adolescentes, eles burlaram as regras opressivas impostas sem avaliarem as consequências danosas, que resultariam de tal ato. Na realidade, eles encontravam-se naquela fase em que os hormônios ditam as regras ao cérebro e ao coração. Tornaram-se mais uma vez prisioneiros, porém agora eram cativos dos seus sentidos, dos seus pensamentos, dos seus desejos, dos seus sentimentos. A grande vontade de estar um com outro era a grande força que os movia.



A partir daquele momento, eles passaram a se encontrar furtivamente. As escondidas. Evitavam as companhias desnecessárias em seus isolamentos. Ela conseguia descer para brincar e passear no jardim. Ele fugia dos seus trabalhos no campo de vez em quando, só para poder esbarrar nos passeios dela. Por entre árvores e arbustos, trocavam sorrisos a princípio; depois avançaram para a proximidade dos afagos; até que enfim passaram a se deleitar com os momentos de amor mais ousados.



Sabe-se que segredo não dura muito. Não há nada encoberto, que não venha a ser descoberto. Na realidade, não há crime perfeito. Esse sempre será desvendado algum dia de alguma forma. A verdade é que o idílio da Sinhazinha com o Escravo chegou aos ouvidos do Senhorio, que ficou possesso de raiva. Gritou, esbravejou, armou-se e saiu à tardezinha para encontrar o apaixonado casal entre as plantas da propriedade.



Foi acompanhado dos seus homens e o jovem casal não sabia que estava sendo caçado. Um nos braços do outro, na completa felicidade, quando ouviram o esbravejar do Senhorio que os fitava com os olhos chispando fogo e arma em punho.



− Negrinho atrevido larga minha filha, pois vou acabar com sua vida imprestável! – gritou furioso.



− Não meu Pai! Não faça isso, ele é o homem que amo − clamou em desespero a Sinhazinha.



− Cale-se, filha maldita! Depois conversaremos − retrucou o Senhorio. − Escravo não é gente. Ele me pertence e eu faço o que quiser com ele.



O escravo de olhos esbugalhados pelo pavor e todos os demais ao redor já sabiam que algo muito grave iria acontecer. Tentou afastar-se devagarinho, porém o Senhorio mais rápido disparou e a Sinhazinha sem pestanejar colocou-se entre a bala e o seu amado. Foi atingida fulminantemente e, sem um grito de ai, caiu com o peito vermelho e uma lágrima escorrendo pela sua suave face.



Por breves segundos, fez-se um silêncio sepulcral.



− Minha filha! − urrou o Senhorio correndo para amparar a filha, que despencou sobre a grama verde em seu vestido branco com a grande mancha vermelha no peito, que aumentava rapidamente.



Ninguém jamais vira aquele rude homem enfraquecido. Sua dor era tão grande, que abraçava a filha inerte aos prantos. O escravo que estivera paralisado com o choque da cena brutal, em que lhe roubaram a sua amada, aproveitou para sair do cenário trágico com o coração partido e sem que os presentes o percebessem. Correu para se esconder e fugir nas margens do rio coberto pela vegetação do mangue.



O Senhorio pegou sua filha morta entre os braços e a carregou trôpego para o solar, que agora chorava com todos os seus habitantes. Ao depositar o corpo na mesa da sala e levantar a cabeça, deixou ver seu crispado rosto coberto por lágrimas.



− Capitão do Mato! Pegue seus homens e cace aquele negrinho vivo. Eu o quero aqui até a hora do enterro − determinou implacável com o duro coração, que não se abrandou diante de tamanha desgraça.



O Capitão do Mato organizou as buscas. Seus homens e, também, escravos acenderam tochas para iluminar o caminho. Foi uma noite de suplício para todos. A busca na floresta e o velório no solar. Quando o sol começou a clarear às primeiras horas do dia, os cachorros encontraram o escravo, que foi açoitado barbaramente e arrastado até a porta principal, onde o Senhorio aguardava sem piedade.



No jardim do solar, bem na frente desse, fora aberta uma enorme cova para receber a jovem Sinhazinha. Entre muito choro, ocorre o enterro e após se depositar o caixão na sepultura, o Senhorio declarou sua sentença.



− Peguem esse negrinho e o enterrem vivo de cabeça para baixo, para contemplar minha filha e sua senhoria! − pronunciou essa ordem cruel.



Ordem dada e obedecida. No lugar, em que supostamente ocorreu esse sepultamento, foi erguida uma estátua em homenagem ao negro, que derramou seu suor por essa terra, enriquecendo o branco sem ter nenhum direito, nem mesmo à vida.












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