A Sinhazinha e o Escravo
Comentário
Meus
filhos já conheciam essa triste história, que lhes foi contada durante suas
visitas à Ferreiro Torto em passeios organizados pelas suas escolas na infância
e também na adolescência. Enquanto adentrávamos pela alameda que leva ao solar,
Victor Hugo lembrou-se da lenda e relatou um pouco em breves palavras. Patrícia
admirou-se e comentou: você ainda se lembra dessa história? Eu fiquei empolgada
porque não tive a oportunidade de ouvir esse dramático relato. Ao término da
visitação, fui a uma das sacadas apreciar a visão preciosa da paisagem
circundante da enorme construção, que abrigava os proprietários vários, que se
sucederam no local, hoje tombado pelo Patrimônio Histórico e administrado pela
eficiente Prefeitura de Macaíba/RN no Brasil. Ao meu lado, Canindé do Museu,
presenteou-me com esse comovente fato, que ao certo, não se sabe, se foi real
ou lenda. Mas como toda lenda vem de algum fato ocorrido e por se tratar da
época escravocrata, podemos supor que ele tem tudo para ser real.
A
lenda por Canindé do Museu e adaptada por Jania Souza
Há
muito tempo atrás, tanto tempo que antecedeu a alforria da população escrava em
Macaíba pelos abolicionistas potiguares e homens ilustres da terra em 1875,
data antecessora a data oficial da libertação dos escravos no Brasil em 13 de
maio de 1888, quando a Princesa Isabel assinou a Lei da Abolição da
Escravatura, aconteceu esse triste fato, que passou a ser narrado às novas
gerações pelos mais antigos.
No
fidalgo Solar do Ferreiro Torto, morava abastada família. A bela e jovem filha
do poderoso Senhor do lugar, certo dia, ao se debruçar da sacada em suas
brincadeiras com suas mucamas, do alto, depara-se com belo jovem negro, que
caminha na direção do casario por entre as plantas.
Seus
olhos se cruzam e um fogo percorre o corpo de forma eletrizante de cada um
deles. Sorriem institivamente encantados um com o outro. Ele de lá, ela cá em
cima. Distantes por um grande espaço vazio, símbolo invisível da distância que
os separava por causa dos preconceitos erguidos em torno das relações entre os
seres humanos naquela época.
Preconceitos
impostos pela sociedade edificada pelo homem branco dominador. O escravo não
era considerado como gente e, sim, como um objeto de trabalho de seu pai, sendo
um ser inferior, que não podia tomar decisões pela própria vida. Era um
prisioneiro; por isso, ele não tinha recursos para oferecer a fim de o juntar
ao patrimônio do senhorio, ampliando o poder desse, uma condição necessária
naqueles tempos para se casar com o consentimento do pai; e, a discriminação
racial, que os distanciava mais ainda por causa da cor da pele, trazia com ela
toda essa história social e econômica de submissão ao dono.
Essa
era uma época muito difícil para o amor entre pretos e mulheres brancas. Os
donos dos escravos, senhores de suas famílias e das posses financeiras, além de
brancos, descendentes dos colonizadores, detentores do poder, realmente podiam
tudo, pois ditavam as leis em seus redutos territoriais e na organização das
cidades e das províncias, essas foram transformadas em estados com a
Proclamação da República Federativa do Brasil em 1889.
Eles
se apaixonaram. Porém sabiam que esse amor era impossível, pois não seria
aprovado pelo Senhorio deles. Ela, embora filha, por ser mulher, também não
tinha direito de escolha para tomar decisões. Eles encontravam-se no mesmo
patamar de falta de direitos em uma sociedade machista e escravocrata.
Como
se sabe, o amor é cego a lógica do mundo, por isso, em sua paixão nascente de
jovens adolescentes, eles burlaram as regras opressivas impostas sem avaliarem
as consequências danosas, que resultariam de tal ato. Na realidade, eles
encontravam-se naquela fase em que os hormônios ditam as regras ao cérebro e ao
coração. Tornaram-se mais uma vez prisioneiros, porém agora eram cativos dos
seus sentidos, dos seus pensamentos, dos seus desejos, dos seus sentimentos. A
grande vontade de estar um com outro era a grande força que os movia.
A
partir daquele momento, eles passaram a se encontrar furtivamente. As
escondidas. Evitavam as companhias desnecessárias em seus isolamentos. Ela
conseguia descer para brincar e passear no jardim. Ele fugia dos seus trabalhos
no campo de vez em quando, só para poder esbarrar nos passeios dela. Por entre
árvores e arbustos, trocavam sorrisos a princípio; depois avançaram para a
proximidade dos afagos; até que enfim passaram a se deleitar com os momentos de
amor mais ousados.
Sabe-se
que segredo não dura muito. Não há nada encoberto, que não venha a ser
descoberto. Na realidade, não há crime perfeito. Esse sempre será desvendado
algum dia de alguma forma. A verdade é que o idílio da Sinhazinha com o Escravo
chegou aos ouvidos do Senhorio, que ficou possesso de raiva. Gritou,
esbravejou, armou-se e saiu à tardezinha para encontrar o apaixonado casal
entre as plantas da propriedade.
Foi
acompanhado dos seus homens e o jovem casal não sabia que estava sendo caçado.
Um nos braços do outro, na completa felicidade, quando ouviram o esbravejar do
Senhorio que os fitava com os olhos chispando fogo e arma em punho.
− Negrinho
atrevido larga minha filha, pois vou acabar com sua vida imprestável! – gritou
furioso.
−
Não meu Pai! Não faça isso, ele é o homem que amo − clamou em desespero a
Sinhazinha.
−
Cale-se, filha maldita! Depois conversaremos − retrucou o Senhorio. − Escravo
não é gente. Ele me pertence e eu faço o que quiser com ele.
O
escravo de olhos esbugalhados pelo pavor e todos os demais ao redor já sabiam
que algo muito grave iria acontecer. Tentou afastar-se devagarinho, porém o
Senhorio mais rápido disparou e a Sinhazinha sem pestanejar colocou-se entre a
bala e o seu amado. Foi atingida fulminantemente e, sem um grito de ai, caiu
com o peito vermelho e uma lágrima escorrendo pela sua suave face.
Por
breves segundos, fez-se um silêncio sepulcral.
−
Minha filha! − urrou o Senhorio correndo para amparar a filha, que despencou
sobre a grama verde em seu vestido branco com a grande mancha vermelha no
peito, que aumentava rapidamente.
Ninguém
jamais vira aquele rude homem enfraquecido. Sua dor era tão grande, que
abraçava a filha inerte aos prantos. O escravo que estivera paralisado com o
choque da cena brutal, em que lhe roubaram a sua amada, aproveitou para sair do
cenário trágico com o coração partido e sem que os presentes o percebessem.
Correu para se esconder e fugir nas margens do rio coberto pela vegetação do
mangue.
O
Senhorio pegou sua filha morta entre os braços e a carregou trôpego para o
solar, que agora chorava com todos os seus habitantes. Ao depositar o corpo na
mesa da sala e levantar a cabeça, deixou ver seu crispado rosto coberto por
lágrimas.
−
Capitão do Mato! Pegue seus homens e cace aquele negrinho vivo. Eu o quero aqui
até a hora do enterro − determinou implacável com o duro coração, que não se
abrandou diante de tamanha desgraça.
O
Capitão do Mato organizou as buscas. Seus homens e, também, escravos acenderam
tochas para iluminar o caminho. Foi uma noite de suplício para todos. A busca
na floresta e o velório no solar. Quando o sol começou a clarear às primeiras
horas do dia, os cachorros encontraram o escravo, que foi açoitado barbaramente
e arrastado até a porta principal, onde o Senhorio aguardava sem piedade.
No
jardim do solar, bem na frente desse, fora aberta uma enorme cova para receber
a jovem Sinhazinha. Entre muito choro, ocorre o enterro e após se depositar o
caixão na sepultura, o Senhorio declarou sua sentença.
−
Peguem esse negrinho e o enterrem vivo de cabeça para baixo, para contemplar
minha filha e sua senhoria! − pronunciou essa ordem cruel.
Ordem
dada e obedecida. No lugar, em que supostamente ocorreu esse sepultamento, foi
erguida uma estátua em homenagem ao negro, que derramou seu suor por essa
terra, enriquecendo o branco sem ter nenhum direito, nem mesmo à vida.
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