quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

CRÔNICA DO ESCRITOR CLAUDER ARCANJO

Viagem à província

Clauder Arcanjo

Antes que este ano de 2008 se fosse, resolvi visitar a minha província:
Santana do Acaraú, no Ceará. Minha eterna Licânia. Trafeguei quinhentos
quilômetros, mas, confesso, não cansei. Quem volta para casa, parece,
quase nunca se cansa.
Ao longo do caminho, uma chusma de lembranças acorreu-me à mente. Tipos e
personagens rodopiavam na memória; memória afetiva, diga-se bem. Tipos
vivos que, de quando em vez, se intrometem nos dias atuais, em especial na
minha ficção. Sempre bebo em minha terra natal quando o assunto é ficção.
E qual escritor que não o faz?
Era véspera de Natal, entrei pelas ruas da cidade próximo ao fim da tarde.
O sol ainda incidia sobre os paralelepípedos. Como estava acompanhado do
escritor Francisco Rodrigues da Costa, natural de Areia Branca, no Rio
Grande do Norte, vi-me no papel de guia.
— Aqui é a Cadeia Pública, Chico! Palco de algumas cenas do meu romance
inédito.
Chico nada disse. Correu a vista pelas paredes vetustas, tomadas pelas
marcas do tempo, e silenciou. Quis arrancar-lhe algum comentário: uma
opinião, uma frase, algo enfim... porém lhe respeitei a mudez. Certas
respostas só vêm com o tempo, quase nunca no calor da hora.
Frente à praça Padre Antônio Tomás, um misto de alegria e exultação
acorreram-me à voz.
— Padre Antônio Tomás, o príncipe dos poetas cearenses. Maior vate da
terra de José de Alencar, Chico!... ‘Ontem via-se-lhe em casa a esposa
morta/ e a filhinha mais nova tão doente/ Hoje o empresário vai bater-lhe
à porta...’ — O trinado das aves canoras a compor o fundo musical à minha
nativa empolgação. E nada do filho de Neco Carteiro se pronunciar!
Inquieto com tanta mudez, passei na casa dos meus genitores, pedi a bênção
a Maria Djanira e a Zequinha, e rumei para a fazenda. Lá, já se
encontravam Luzia e os meninos.
Ao longo do pequeno trecho de estrada carroçável, à sombra dos pés de
oiticicas, cuidei de explicar ao Chico a origem do termo Licânia.
— Os primeiros colonizadores portugueses, ao aqui chegarem, deram pelo
vale apinhado dessas árvores, Chico de Neco Carteiro, e resolveram dar-lhe
o nome de Licânia, oiticica em Portugal. — expliquei, com laivos de
pretenso historiador.
— Interessante. — foi o máximo que consegui arrancar dos lábios do
areia-branquense.
Chegando à fazenda, cuidamos de descansar ao balanço das redes no alpendre.
O aracati corria célere e cioso, refrescando o chão esturricado da
caatinga. Lembrei-me do livro Vidas secas, de Graciliano Ramos. Vi um
certo ar de Baleia na cadela do morador.
A noite caiu rápida, mas não tivemos logo o clarão da lua. O escuro,
enfim, tomou conta da mataria ressequida pelo sol inclemente de dezembro.
Conversamos, então, sobre as chances de um bom inverno. Não sem antes
relembrarmos causos, e compararmos os atrativos das duas províncias —
Santana e Areia Branca.
Como em assunto de disputas provincianas, quase ninguém capitula, logo
percebi que a madrugada seria curta para tantas e renhidas argumentações.
Resolvi me recolher, deixando a disputa aberta para a manhã vindoura.
“Levarei este cabra para ver de perto a Igreja Matriz, e ele se renderá
aos encantos de Sant’Anna.” — pensei, cá com os meus olhos sonolentos,
todavia decididos quanto à vitória final.
Os agrados do banho de açude, a sesta esticada na varanda da casa-grande,
e o conversar acerca das coisas do campo levaram-nos a esquecer a visita à
cidade. Deixamos tudo para o domingo, dia santo. E assim acertamos.
Na tarde do domingo, entramos na rua quase às cinco da tarde. Corremos de
carro os principais logradouros. Em cada um deles, vi-me invadido pelas
lembranças. Igreja de São João, Mercado Público, Patronato Sant’Anna,
Praça do Congresso, Maternidade...
Chico percebeu meu silêncio e o respeitou. Em alguns pontos, deixei o
carro seguir em marcha lenta. Meus fantasmas acorreram, seres
inesquecíveis que permaneciam vivos dentro de mim, puxando conversa,
lembrando coisas, realçando o passado distante. As brincadeiras de menino,
as lapinhas do Natal de antigamente, as corridas de cavalo no prado, as
famílias se preparando para os festejos de julho, as novenas na Igreja
Matriz, Pelô, os vaqueiros encourados, os desfiles das mulheres da vida...
tudo presente, como se apenas escondidos nas paredes e nas pedras da
cidade.
Dei mais uma volta, e parei frente à casa dos meus pais. Ficamos, então, a
discutir amenidades. Como é comum àqueles que sentam nas calçadas. De
repente, um bêbado se aproxima, pede-nos licença e se dirige ao meu pai.
— Seu Zequinha, quero lhe pedir um favor: não deixe com que seu filho, o
doutor José Maria, se afaste de Santana. Viu?!... — mal proferiu tais
palavras, foi tomado por um choro convulsivo.
As lágrimas, também, acorreram aos nossos olhos. Meu pai cuidou de
consolá-lo. Não foi fácil, era choro decidido. Quando, enfim, ele se
afastou, eu resolvi me despedir.
Antes de voltar à fazenda, mais um passeio pelas ruas de Santana. Agora,
ouvindo, claramente, os meus fantasmas a pronunciar:
— Queremos lhe pedir um favor: não se afaste de Santana. Viu?!...
Chico de Neco Carteiro afagou-me o ombro amigo, dizendo:
— Uma bela cidade, Amigo Velho. Uma bela cidade!...

Clauder Arcanjo — Professor
clauder@pedagogiadagestao.com.br

Texto publicado no jornal Gazeta do Oeste (Mossoró-RN), caderno Expressão,
espaço Questão de Prosa, edição de 28 de dezembro de 2008.

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