O Quitandinha, bar na Praça Gentil Ferreira no bairro do Alecrim. Local em que aconteciam grandes movimentos populares no passado. Foto do acervo do escritor, sociólogo, pesquisador, folclorista Gutenberg Costa, autor da crônica. Aplausos pela excelente memória e pesquisa. Conheci muitas das personagens citadas. Faziam parte do panorama da cidade em minha infância, quando transitava pelas ruas da cidade, para ir à escola na Av. 10 - Externato Potiguar e, depois, na minha dourada e inesquecível adolescência.
Adeus, tia Chica!
Gutenbeg Costa
A expressão usada no título faz alusão a um dito popular. Emprega-se em assuntos encerrados, quando a coisa não tem mais jeito. Caso perdido e bem carregado. Despedida definitiva de adeus. Nem adianta chorar pelo leite derramado, da vacaria ao caminho de casa. Mas, quem teria sido essa tal de tia Chica? Na verdade, toda Francisca, sendo pobre, logo recebia o apelido de Chica. Minha avó materna era uma Francisca. Mulher rica que era carinhosamente chamada pelo povo de Pendências/RN de dona Francisquinha. Essa expressão antiga eu ouvia da boca de meu pai, Geraldo Costa, quando rasgava a faca a nossa bola de futebol ou quebrava um brinquedo nosso barulhento. Não haveria perdão ou retorno. Não adiantava reclamar à mãe do Bispo. Foi-se num rabo de foguete. Acabou-se o que era doce. A vaca foi pro brejo. Pro quinto dos infernos, onde o cão perdeu as botas. Nem olhei pra trás, para não virar pedra de sal. Fiquei olhando o passado que se perdeu feito gato escaldado e com sal na moleira: - Adeus, tia Chica!
E incontáveis estudiosos-pesquisadores da nossa cultura popular brasileira já relacionaram, em seus trabalhos, os ditos populares relativos ao adeus e suas despedidas. Ao que não volta e nem que a vaca tussa. Perdido o latim pra sempre! Morreu Maria Preá! A vaca foi pro brejo! Além de queda, coice! E o sertanejo que se revolta com o descaso é o mesmo que, resiliente, diz conformado, sem chorar o leite derramado: foi assim que Deus quis! E o tinhoso/capeta é quem paga o pato das desgraceiras humanas...
Fosse enumerar o que eu vi na minha infância e adolescência, em minha Natal, nos anos 60/70, daria mais que um livro volumoso, daria mil enciclopédias. Desapareceram a toque de mágica, os principais casarões antigos e históricos do meu Alecrim, além da Cidade Alta, Petrópolis, Tirol e Ribeira, entre outras localidades... Do meu citado Alecrim, quando estou caminhando aos sábados, vou apontando as pedras drumondianas, no caminho. Ali eu tomei café. Era o tradicional bar Café Quitandinha! Acolá eu visitava com minha mãe um casarão dentro de um Sítio. Pertencera ao senador Eloy de Souza e, por último, ao escritor Rômulo Wanderley. Ali fora isso e acolá era tal coisa. No meu livro – ‘Breviário Etílico Gastronômico e Sentimental da Cidade do Natal’, (2019), relacionei centenas de bares e restaurantes visitados por mim, entre 1975 a 2019. Obra esgotada quase no dia de seu lançamento. E aqui vou apenas recordar alguns locai do Alecrim que só existem em nossas saudosas recordações: - Churrascaria Dom Pedrito; Café Nice; Cantinho da Jia; Beco da música; Picado do Monteiro; Thifanys; Nenzinha; Anália; Gaiola do Louro; Galeteria do Neto e entre as diversas mercearias e bodegas, uma das últimas, a da de Dona Duca, da Avenida 2. Nenhum ambiente recebeu em vida uma placa de ‘Tradição natalense’, de parte do poder público municipal ou o seu (a) proprietário (a) um titulo de cidadania. Quem se ocuparia com tais coisas?
E assim, eu vi ou entrei em casarões, clubes, bares e cabarés espalhados sem rastros nos dias atuais. Quando esperava o tombamento histórico do velho e alegre Arpeje da Ribeira, corri mais o amigo fotógrafo Canindé Soares para registrar seus escombros. E assim o velho prédio havia sido tombado, literalmente! Adeus tia Chica! Quando tentei levar um amigo turista a certos lugares famosos do passado: - Carne Assada do Lira, nas Rocas. Tenda do Cigano e Bar Castanhola, na região da praia do Meio. E em outros bairros: Granada; Meladinha do Nazi; Peixada Potengi; Cabeça do bode; Confeitaria Delicia; Casa Grande; Mintchura; Odete; Amarelinha; É Nosso; Pé do Gavião; Mário; Feijão Verde; Expedicionário; Macaxeirão e Rabada do Pedoca. Tudo, só saudades e cinzas. Adeus Natal! Adeus tia Chica!
Tentei mostrar aos meus netos pelo menos as fachadas dos cinemas: São Luiz; São Pedro, São Sebastião e o Olde, no Alecrim, e dei com os burros nágua. Adeus tia Chica! Cadê o meu saudoso Grupo Escolar Professor Clementino Câmara? Que eu estudei do primeiro ao quinto ano, na Avenida Alexandrino de Alencar. Terra da marreta e do descaso. Terra do velho Nero, que tocava harpa e dava risadas, as desgraceiras do seu tempo. Quase nada de pedra velha, sob as pedras novas. Muito luxo e pouco bucho! Muita farofa e pouca carne, em épocas eleitoreiras!
Cadê a ponte velha de Igapó? Á qual eu ias com medo do barulho, na boleia do misto de Chico da Rocha, a caminho para Pendências. A Praça Gentil Ferreira/Pensão Caiana? Cadê o caldo de cana, com pão doce brilhando, nas bodegas do meu tempo infantil? Cadê o festivo picado da feira do Alecrim, nas noites das sextas feiras? Cadê o Coreto tão animado da Praça André de Albuquerque? Fulano quando tomava cachaça, balançava o Coreto...
E quem sabe, além de criminoso saudosista eu também seja agora acusado pelo crime da doidice. Tá doido, caboclo da feira do Alecrim? Não nasceu em Natal? Não se acostumou a ver as corriqueiras demolições, depois do tempo de Djalma Maranhão? Não acabaste com as saudades dos grupos folclóricos nas ruas e praças? Os blocos de carnavais que citastes em teu livro – ‘Antigos Carnavais da Cidade do Natal’, (2001)? Não saiu ainda de tua cachola os índios Guaranis de Bum Bum? O Bambelô Asa Branca e a escola xará de samba, do velho Severino Guedes? As majestades, Paulo Maux e Severino Galvão? E como explicar esse progresso tão destrutivo, como profetizara o saudoso arquiteto Jaime Lerner, (1937-2021).
Onde estará o chapéu panamá de meu amigo Chico Elion? A graça de meu compadre Celso da Silveira? A cartola do mestre Cornélio Campina? O charuto do gênio Câmara Cascudo? Os discos de minha amiga cantora Glorinha Oliveira? Os bolachões que eu vi de Grácio Barbalho? As gargalhadas estridentes que ouvi do Padre Zé Luiz? Os rompantes políticos de Carvalho Neto e Eugênio Neto, ditos na parte superior do inesquecível café/bar Quitandinha? Os sonhos políticos do fotógrafo Deodato Dantas? A riqueza da prima de Elizabeth, dona Severina Embaixatriz? Os poemas soltos em papéis amassados de Milton Siqueira? O violino de Gumercindo Saraiva? O as histórias do folclore de Veríssimo de Melo e Deífilo Gurgel? As sanfonas de Zé Menininho e Zé Minhoca? As tiradas humorísticas de Raimundo Cego e Zé Areia? Os pulos de doutor Choque? – Danou-se, colega! O cajado de Maria Mula Manca? Os sermões dos padres Eymard’le e Teobaldo? Os jornais noturnos de Cambraia? O cachimbo de Chisquito? As carreiras de Cuíca e Lambretinha? As boemias de Roberto Freire e Luiz Tavares? Este último, primo de meu pai. A rabeca de Zé André? Os apitos de Antônio Melé e Lucarino? O pandeiro saltitante de Bossa do Café Nice? Os poemas matutos de Zé Saldanha e Bob Motta? As violas de Chico Traíra e Severino Ferreira? As valentias de Nazareno, o nosso Madame Satã? O chapelão de Pedro Grilo? As calcinhas femininas vendidas nas ruas por Maria Barra Limpa? As histórias de Zé Alexandre Garcia e Zé Melquíades? Meu Alecrim Futebol Clube, de Severino Lopes e Bastos Santana? As cantadas amorosas ambulantes da obesa e desdentada Rocas Quintas? Figura que eu conheci, perambulando quixotescamente nas ruas da Natal dos anos 70/80. Cadê as irreverencias da dupla Velocidade e Duruca? Os gritos dos pregoeiros de rua dos meus anos 60 – Vai passando o mugunzá quentinho... Cocada preta aqui no tabuleiro... Fiado vê, mais não compra...
São alguns personagens populares das ruas antigas da nossa bucólica Natal. Nomes e histórias inesquecíveis e citados no meu esgotado livro - ‘Natal Personagens Populares’, (1999). O maior apanhado de vivências e fotografias dos tipos pulares de rua, em um só livro. Pesquisa é memória/história. Ficção é outros quinhentos. Reclamar a mãe do Bispo? E são muitas as lamentações em um só arremate. Saudades que não caberiam nas brechas daquele velho muro do outro lado do mundo. O melhor mesmo para hoje é subir na sela do cavalo de Joca do Pará e sair à francesa nas vielas e becos da antiga e boa Nata do meu tempo de infância e adolescência. Eu vi a fumaça do velho mercado da Cidade Alta e o gato carregando a metade da ponte de Igapó. Vi outra Natal. Espiei muitas desgraças em meus 65 anos... Cala-te boca!
E quem vier depois, que feche a porteira. Desabafar, dizem que é bom para o coração, afirmam os sábios. Já contei parte do meu saudosismo hoje aqui. Confesso que fui até chato. Avisem a desolada tia Chica, que volto já, só fui ali tomar suco de maracujá, nas quitandas do relógio do meu Alecrim!
Morada São Saruê, Nísia Floresta/RN.
Gutenberg Costa
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