domingo, 1 de fevereiro de 2015

CAMBONO - A VIAGEM DO MAGUINHO, POR CLAUDER ARCANJO

Cambono
(Parte XXV)

Clauder Arcanjo

A Viagem do Maguinho

Para João Helder Alves Arcanjo

Angelita Perigosa, mesmo com o sumiço do pastor da Igreja da Bola de Fogo, continuou a morar em Licânia.
Claro que não faltaram propostas de abrigo para o seu corpo escultural e para refrigério de sua alma sofrida, fruto do “intempestivo desaparecimento” do indivíduo de “porte médio, de calva reluzente e de hábitos brancos”.
Se não se lembra de quem, volte ao capítulo anterior e se situe, perdido ledor.
O quê!? Perdeu o jornal do domingo último!? Não foi isso, não. Enrolou o peixe trazido da feira nele?! Pela santa madre igreja dos leitores abandonados! É o que dá entregar a sua arte de ficcionista ao mundo desprezado das páginas dominicais de uma gazeta. Pouco importa, sigamos. Há esperança de que alguém me salve do anonimato.
Apesar das inúmeras ofertas de casa, comida e roupa lavada, Angelita Perigosa abrigou-se no quarto dos fundos da casa do Zé Aguiar, pertinho da sua oficina mecânica.
Tão logo ela lá se alojou, deram-se duas coisas. A primeira, uma mão pesada de fuxico pelos becos e ruas de Licânia, dando como certa a mancebia do Zé Aguiar com a mulata das Minas Gerais. A segunda, um milagre. Explicarei, apressado e arisco leitor. O ambiente da oficina, antes tão repleto de graxa, de pneus velhos e de lataria enferrujada e amontoada; com homens mal vestidos, dentro de bermudões rasgados e com barba por tirar (sem falar no banho atrasado de mais de uma semana de alguns), transformou-se em menos de um dia. Zé Aguiar vestia-se de linho, e dava ordens como um notável gerente de funilaria e de mecânica; os colaboradores (assim passaram a serem chamados) passaram a trajar camisa limpa e calça social; a oficina ganhou uma lavagem e uma reorganização total. Os pneus velhos foram doados aos meninos do Alto da Liberdade; deles, fizeram brinquedos e motivo de festa. A ferramentaria foi limpa e colocada sob a batuta da ordem e do zelo. Os carros abandonados pelos clientes foram arrastados para a frente da casa de cada um deles. Seu Raimundo Vandico, sogro do proprietário, foi encarregado desta parte. Para este fim, serviu-se do caminhão do Eurico Carneiro. Este, solícito, cobrou uma pechincha para cada veículo devolvido.
Confessaram-me alguns que, antes do trabalho, os “colaboradores da Oficina do Aguiar” passavam na Pedra do Mercado e, depois de sorverem o indefectível chá de burro, adquiriam um cobre de brilhantina e meio cobre de perfume de alfazema. Passavam o pente de osso no cabelo grosso, sacudiam a porção do cheiroso nas axilas cabeludas e seguiam, festivos, para o batente.
Angelita Perigosa acordava bem cedo, tomava seu banho, cantando modinhas amorosas, e, em seguida, sentava na calçada da oficina, dando instruções a todos aqueles que procuravam pelos serviços de mecânica e funilaria da Oficina do Aguiar.
— Serei sua secretária e ocuparei o cargo de sua Relações Públicas. Sua RP, Senhor Aguiar! — anunciava, melosa, a morena da pele morena e almiscarada.
Zé Aguiar não sabia o que era ter uma secretária, nem muito menos o papel que cabia a uma Relações Públicas; mas quem seria ele para discordar daquela dama tão... tão... ai-jesus!, tão dadivosa e de voz tão enternecedora. Ai-jesus!
Os negócios tomaram foros de crescimento chinês. Vieram clientes de todos os rincões de Licânia. Até Pedro Chagas, vaqueiro do Eldorado, compareceu ao estabelecimento; ele que só tinha um cavalo baio como singelo meio de transporte.
Dona Maroca, incomodada com tanto “desfrute e falta de vergonha na cara dos homens da nossa terra”, resolveu perguntar ao vaqueiro Pedro Chagas:
— Até o senhor, seu Pedro!? Qual a marca do seu veículo? — interrogou-lhe Maroca, ferina, mal ele passou na calçada da sua casa.
Pedro Chagas, inteligente e arteiro, devolveu-lhe, de bate-pronto:
— Sempre sou um homem prevenido, minha senhora. Estou pensando em adquirir o fusca usado do Sebastião da De Lourdes; e resolvi contratar, antecipadamente, os serviços da Dona Angelita. Opa!, me enganei. Os serviços da oficina do Seu Zé Aguiar.
Mas o caso mais emblemático se deu com os jovens Aristides e Lourenço, o Gatinho. Irmãos que moravam do outro lado do rio, e que vinham, a pé, estudar no Ginásio Santanense. Foram vistos num trelelê esticado com a RP do Aguiar. Ao serem indagados a respeito do que conversavam, deram um muxoxo de desagrado e confidenciaram, em tom de revolta, num discreto aceno de ironia, banhado na água rasa do escárnio:
— Questão de foro íntimo, amigo. Não devia, mas vou matar a sua cruel e ferina curiosidade: fomos pedir uma assessoria à Dona Angelita. Assessoria sobre o quê?! Ora, acerca do nosso primeiro automóvel. Sim, ora mais!, quando nos formarmos e ganharmos o nosso dinheiro, nós já saberemos em que bicho de quatro rodas vamos montar. Melhor, dentro de que bicho motorizado vamos girar.
— Uma pouca vergonha. Isto é o fim do mundo! Deus nos guarde de tanta profanação ao chão sagrado de Sant’Anna! — vomitou, ferina e com um rosário na mão, a pia beata, conselheira do pároco municipal.
Dois meses depois, a fama da oficina rompeu os limites da província. As cidades de Massapê, Morrinhos, Bela Cruz, Marco, Cruz, Acaraú, Amontada, Itapipoca, Itapajé, Sobral, Meruoca, São Benedito... traziam os seus carangos para os cuidados da “oficina secretariada pela mulher bela, elegante e de olhos negros como as penas do cupido”.
No entanto, amigo leitor, não há felicidade que para sempre dure. Terei que interromper esta minha novela para abrir espaço para uma tragédia familiar. Ouça-me e, caso tenha alguma fé, reze algo para consolo dos atingidos. Pois bem, Zé Aguiar, num final de tarde de domingo, estava sentado na calçada de casa, a fumar um charuto cubano, a bebericar um vinho francês, em companhia de sua equipe e sob a regência musical de Angelita Perigosa. Angelita cantava, com voz tal qual a de Ângela Maria, os sucessos da juventude de Aguiar. De repente, um grito de desespero vindo de dentro de casa. Era a esposa de Zé Aguiar.
— Não, não, não. Meu Deus!
Zé Aguiar correu para dentro de casa. Lá, encontrou um homem desconhecido. Na mão dele, o capacete do seu filho, o José Ivanildo. Manchado de sangue.
— Perdeu o controle e bateu com a cabeça na queda. Morreu... na hora. Levaram o corpo para o hospital, pediram-me para avisar os pais. Não tive coragem de entrar pela porta da frente. A música... sabe... Neste momento, sabe...
O silêncio cortou o tempo, sepultando a tarde. Angelita entrou e fez com que o casal se sentasse. Preparou um chá, contudo não sabia o que dizer.
Nem eu, caro leitor. Calo-me, fecho a página, dando por encerrado este capítulo. Enterrar um filho é coisa muito forte para este escrevinhador de província.
No dia seguinte, logo cedo, recebo um bilhete do meu irmão mais novo. Transcrevo-o abaixo.

A Viagem do Maguinho

João Helder

Sim, Maguinho, um jeito carinhoso de nos comunicar, como um mago nas coisas que fazia.
Das costumeiras e bem humoradas visitas às fazendas dos santanenses para consertar ou ampliar um bico de luz.
Dos inúmeros questionamentos políticos de um ser irreverente, mas que, na sua face, trazia a coragem de dizer a sua verdade, doa a quem doer.
Do menino, que, um dia, foi artista de "circo" da nossa infância em Santana.
Do homem, filho e pai, que, precocemente, deixou familiares e amigos, "baixando óleo" de tanta tristeza.
Adeus, Mago!
Até um dia, Maguinho!

Bom domingo. Fique com Deus, amigo Zé Ivanildo. Inesquecível Maguinho.

Clauder Arcanjo

clauderarcanjo@gmail.com

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