Cambono
(Parte XXV)
Clauder
Arcanjo
A Viagem do
Maguinho
Para João
Helder Alves Arcanjo
Angelita Perigosa, mesmo com o sumiço
do pastor da Igreja da Bola de Fogo, continuou a morar em Licânia.
Claro que não faltaram propostas de
abrigo para o seu corpo escultural e para refrigério de sua alma sofrida, fruto
do “intempestivo desaparecimento” do indivíduo de “porte médio, de calva
reluzente e de hábitos brancos”.
Se não se lembra de quem, volte ao
capítulo anterior e se situe, perdido ledor.
O quê!? Perdeu o jornal do domingo
último!? Não foi isso, não. Enrolou o peixe trazido da feira nele?! Pela santa
madre igreja dos leitores abandonados! É o que dá entregar a sua arte de
ficcionista ao mundo desprezado das páginas dominicais de uma gazeta. Pouco
importa, sigamos. Há esperança de que alguém me salve do anonimato.
Apesar das inúmeras ofertas de casa,
comida e roupa lavada, Angelita Perigosa abrigou-se no quarto dos fundos da
casa do Zé Aguiar, pertinho da sua oficina mecânica.
Tão logo ela lá se alojou, deram-se
duas coisas. A primeira, uma mão pesada de fuxico pelos becos e ruas de
Licânia, dando como certa a mancebia do Zé Aguiar com a mulata das Minas
Gerais. A segunda, um milagre. Explicarei, apressado e arisco leitor. O
ambiente da oficina, antes tão repleto de graxa, de pneus velhos e de lataria
enferrujada e amontoada; com homens mal vestidos, dentro de bermudões rasgados
e com barba por tirar (sem falar no banho atrasado de mais de uma semana de
alguns), transformou-se em menos de um dia. Zé Aguiar vestia-se de linho, e
dava ordens como um notável gerente de funilaria e de mecânica; os
colaboradores (assim passaram a serem chamados) passaram a trajar camisa limpa
e calça social; a oficina ganhou uma lavagem e uma reorganização total. Os
pneus velhos foram doados aos meninos do Alto da Liberdade; deles, fizeram
brinquedos e motivo de festa. A ferramentaria foi limpa e colocada sob a batuta
da ordem e do zelo. Os carros abandonados pelos clientes foram arrastados para
a frente da casa de cada um deles. Seu Raimundo Vandico, sogro do proprietário,
foi encarregado desta parte. Para este fim, serviu-se do caminhão do Eurico
Carneiro. Este, solícito, cobrou uma pechincha para cada veículo devolvido.
Confessaram-me alguns que, antes do
trabalho, os “colaboradores da Oficina do Aguiar” passavam na Pedra do Mercado
e, depois de sorverem o indefectível chá de burro, adquiriam um cobre de
brilhantina e meio cobre de perfume de alfazema. Passavam o pente de osso no
cabelo grosso, sacudiam a porção do cheiroso nas axilas cabeludas e seguiam,
festivos, para o batente.
Angelita Perigosa acordava bem cedo,
tomava seu banho, cantando modinhas amorosas, e, em seguida, sentava na calçada
da oficina, dando instruções a todos aqueles que procuravam pelos serviços de
mecânica e funilaria da Oficina do Aguiar.
— Serei sua secretária e ocuparei o
cargo de sua Relações Públicas. Sua RP, Senhor Aguiar! — anunciava, melosa, a
morena da pele morena e almiscarada.
Zé Aguiar não sabia o que era ter uma
secretária, nem muito menos o papel que cabia a uma Relações Públicas; mas quem
seria ele para discordar daquela dama tão... tão... ai-jesus!, tão dadivosa e
de voz tão enternecedora. Ai-jesus!
Os negócios tomaram foros de
crescimento chinês. Vieram clientes de todos os rincões de Licânia. Até Pedro
Chagas, vaqueiro do Eldorado, compareceu ao estabelecimento; ele que só tinha
um cavalo baio como singelo meio de transporte.
Dona Maroca, incomodada com tanto
“desfrute e falta de vergonha na cara dos homens da nossa terra”, resolveu
perguntar ao vaqueiro Pedro Chagas:
— Até o senhor, seu Pedro!? Qual a
marca do seu veículo? — interrogou-lhe Maroca, ferina, mal ele passou na
calçada da sua casa.
Pedro Chagas, inteligente e arteiro,
devolveu-lhe, de bate-pronto:
— Sempre sou um homem prevenido, minha
senhora. Estou pensando em adquirir o fusca usado do Sebastião da De Lourdes; e
resolvi contratar, antecipadamente, os serviços da Dona Angelita. Opa!, me
enganei. Os serviços da oficina do Seu Zé Aguiar.
Mas o caso mais emblemático se deu com
os jovens Aristides e Lourenço, o Gatinho. Irmãos que moravam do outro lado do
rio, e que vinham, a pé, estudar no Ginásio Santanense. Foram vistos num
trelelê esticado com a RP do Aguiar. Ao serem indagados a respeito do que
conversavam, deram um muxoxo de desagrado e confidenciaram, em tom de revolta,
num discreto aceno de ironia, banhado na água rasa do escárnio:
— Questão de foro íntimo, amigo. Não
devia, mas vou matar a sua cruel e ferina curiosidade: fomos pedir uma
assessoria à Dona Angelita. Assessoria sobre o quê?! Ora, acerca do nosso
primeiro automóvel. Sim, ora mais!, quando nos formarmos e ganharmos o nosso
dinheiro, nós já saberemos em que bicho de quatro rodas vamos montar. Melhor,
dentro de que bicho motorizado vamos girar.
— Uma pouca vergonha. Isto é o fim do
mundo! Deus nos guarde de tanta profanação ao chão sagrado de Sant’Anna! —
vomitou, ferina e com um rosário na mão, a pia beata, conselheira do pároco
municipal.
Dois meses depois, a fama da oficina
rompeu os limites da província. As cidades de Massapê, Morrinhos, Bela Cruz,
Marco, Cruz, Acaraú, Amontada, Itapipoca, Itapajé, Sobral, Meruoca, São
Benedito... traziam os seus carangos para os cuidados da “oficina secretariada
pela mulher bela, elegante e de olhos negros como as penas do cupido”.
No entanto, amigo leitor, não há
felicidade que para sempre dure. Terei que interromper esta minha novela para
abrir espaço para uma tragédia familiar. Ouça-me e, caso tenha alguma fé, reze
algo para consolo dos atingidos. Pois bem, Zé Aguiar, num final de tarde de
domingo, estava sentado na calçada de casa, a fumar um charuto cubano, a
bebericar um vinho francês, em companhia de sua equipe e sob a regência musical
de Angelita Perigosa. Angelita cantava, com voz tal qual a de Ângela Maria, os
sucessos da juventude de Aguiar. De repente, um grito de desespero vindo de
dentro de casa. Era a esposa de Zé Aguiar.
— Não, não, não. Meu Deus!
Zé Aguiar correu para dentro de casa.
Lá, encontrou um homem desconhecido. Na mão dele, o capacete do seu filho, o
José Ivanildo. Manchado de sangue.
— Perdeu o controle e bateu com a
cabeça na queda. Morreu... na hora. Levaram o corpo para o hospital, pediram-me
para avisar os pais. Não tive coragem de entrar pela porta da frente. A
música... sabe... Neste momento, sabe...
O silêncio cortou o tempo, sepultando a
tarde. Angelita entrou e fez com que o casal se sentasse. Preparou um chá,
contudo não sabia o que dizer.
Nem eu, caro leitor. Calo-me, fecho a
página, dando por encerrado este capítulo. Enterrar um filho é coisa muito
forte para este escrevinhador de província.
No dia seguinte, logo cedo, recebo um
bilhete do meu irmão mais novo. Transcrevo-o abaixo.
A
Viagem do Maguinho
João
Helder
Sim, Maguinho, um jeito carinhoso de
nos comunicar, como um mago nas coisas que fazia.
Das costumeiras e bem humoradas visitas
às fazendas dos santanenses para consertar ou ampliar um bico de luz.
Dos inúmeros questionamentos políticos
de um ser irreverente, mas que, na sua face, trazia a coragem de dizer a sua
verdade, doa a quem doer.
Do menino, que, um dia, foi artista de
"circo" da nossa infância em Santana.
Do homem, filho e pai, que,
precocemente, deixou familiares e amigos, "baixando óleo" de tanta
tristeza.
Adeus, Mago!
Até um dia, Maguinho!
Bom domingo. Fique com Deus, amigo Zé Ivanildo.
Inesquecível Maguinho.
Clauder
Arcanjo
clauderarcanjo@gmail.com
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