*Em horas vagas — o tempo encantado de Jania Souza.*
Há livros que se abrem como janelas antigas, deixando entrar o perfume da infância e o murmúrio das águas. "Em horas vagas", de Jania Souza, publicado pela Caravela Selo Cultural em 2017, é uma dessas obras raras em que a prosa se confunde com a poesia, e o cotidiano se revela com a doçura de um retrato amarelado pelo tempo. Potiguar em essência e memória, o livro é um relicário de dezessete contos que não se contentam em narrar, eles respiram, recordam, sentem. Cada texto é um lampejo de lembrança, uma fresta por onde escoa o passado da cidade do Natal, onde o som dos chafarizes ecoa como reza. No conto de abertura, a autora escreve: “Colhia-se, entre pedras, o precioso líquido. Vinham crianças, idosos, adultos. Todos em súplica por um fio de vida.” — e o leitor, tocado, quase sente o peso do balde e o frescor da água.
Mas Jania não se limita ao encantamento. Sua escrita também é denúncia e compaixão. A poeta observa o mundo com o olhar de quem reconhece as feridas da modernidade: os que vivem à margem, os corpos cansados das mulheres de tripla jornada, o abismo entre o real e o virtual. Em um de seus contos mais pungentes, confessa: “Não engano meus sentidos, uma vez que nos mesmos cruzamentos deparo-me invariavelmente com a miséria debruçada na janela de meu peito. Agonizante Cristo derramado na cruz do cruzamento.” — e o leitor sente que a cidade também sangra.
Entre a dureza da rua e o sopro da lembrança, há espaço para o riso e a ternura. Nos contos “O dia em que o boi falou” e “O poeta seu João”, a autora desenha a leveza com o mesmo cuidado com que, em “Anáguas de espuma”, ensaia o erotismo: “A renda das espumas traça um bailado na areia. Decora o namoro singelo, porém nada angelical, desabrochado em fogo de sensualidade...”
É nessa mistura de pureza e fogo, de cotidiano e sonho, que a voz de Jania se afirma feminina, múltipla, inteira.
Ler "Em horas vagas" é como mergulhar em um rio de memórias: há correntezas que nos arrastam para a reflexão, há águas mansas que nos devolvem à infância. E, quando emergimos, trazemos conosco a sensação de que o tempo pode ser tecido com palavras.
Jania Souza, economista e contadora de formação, prova que os números também sabem dançar quando tocam a alma da literatura. Sua escrita confirma que, mesmo entre planilhas e cálculos, há espaço para o encanto. E foi assim, em uma hora vaga, entre o trabalho e o silêncio, que li sua obra, sentindo que o tempo havia se tornado poesia.
Ozany Gomes - Mentora e Coordenação do Clube de Leitura Pangeia. Presidiu a Sociedade dos Poetas Vivos e Afins do Rio Grande do Norte - SPVARN, trabalha na Pinacoteca do RN. Escritora, poeta, pedagoga, editora de livros e produtora cultural. Compartilha com seu esposo, o poeta, professor e historiador Cláudio Wagner os projetos na área da literatura e cultura, inclusive a execução e coordenação do Clube de Leitura Pangeia




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